Goiânia, 19 de novembro de 11 De: 15 a 21 de novembro de 2009
Editorial
Apagão mental
Mesmo tendo dinheiro sobrando, o governo Lula deixou de investir 20 bilhões de reais de 2004 a 2008. Mais do que chuvas e raios, a não aplicação de dinheiro nos locais e momentos certos pode ser responsável pelo blecaute ou apagão que atingiu 18 Estados
“O Príncipe”, do filósofo italiano Nicolau Maquiavel, ganhou uma leitura enviezada no Brasil. No lugar de ser interpretado como uma análise do que é a política, e não do que deveria ser (e dificilmente será), e uma guia para a unificação italiana, que só iria ocorrer mais tarde, em 1861, o livro se tornou uma bíblia de como o político deve fazer maldade e, algumas vezes, bondade. A maldade de uma só vez, para ser esquecida rapidamente. A bondade lentamente (ou de forma contínua, como o programa Bolsa Família), para ser assimilada e, portanto, ficar resíduos no consciente e no inconsciente. Quem ouve os ministros Dilma Rousseff, da Casa Civil, e Edison Lobão, de Minas e Energia, fica com a impressão de que são seguidores maquiavélicos e não maquiavelianos do pensador europeu. Ao serem confrontados com perguntas sobre o apagão ou blecaute elétrico — que atingiu 18 Estados durante três horas —, reagiram de forma autoritária, atípica nas modernas democracias.
Depois de “informar” que o sistema de energia elétrica foi “inteiramente recuperado”, Dilma cortou a voz da sociedade, que avalia que o assunto ainda precisa ser discutido, até para que não se repita: “Caso encerrado”. Lobão seguiu na mesma toada: “Sobre o blecaute, está encerrado”. Tudo bem que o governo não quer discutir o assunto, mas terá de fazê-lo, porque interessa à sociedade ter informações objetivas e, sobretudo, garantias (que o governo não tem condições de dar, certamente) de que o fato não se repetirá. Ao se mostrar radical, o governo pode estar dando um tiro no pé. Se ocorre outro apagão ou blecaute, o que dirá? O governo Lula, que em geral se comunica muito bem, desta vez perdeu, ao engrossar a linguagem, a sintonia fina com a sociedade. Mesmo que tenha sido um blecaute, provocado pelas chuvas e raios, e não um apagão, decorrente de manutenção deficiente das redes de transmissão, o governo deve discutir o assunto de forma mais aberta (até Lula, o simples, complicou ao citar Freud para justificar intempéries). Na verdade, não foi apenas a oposição que politizou o debate. Ao ficar na defensiva, criticando a politização, o governo Lula acabou por politizar, mais do que tucanos e democratas, o debate. A discussão do problema, ainda que politizada, interessa à sociedade. Não deixa de ser estranho, porém, que, envolvida pelo discurso defensivo do marketing do governo Lula, a oposição, mesmo seus melhores quadros, não consegue formatar um discurso crítico que se aproxime, digamos assim, de uma representação da insatisfação da população. Pelo contrário, quase sempre a oposição discute a partir do discurso hegemônico imposto pelo governo. Dilma equivoca-se, mas interessadamente, quando diz que não se deve politizar a crise. Mas não porque o PT era mestre em politizar qualquer crise, e sim porque a politização pode iluminar o problema e, a partir disso, poderão ser encontradas soluções. O ataque e, quem sabe, pressões sobre o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por parte do governo, revelam uma prática autoritária. O Inpe pode não acertar sempre, mas precisa ser ouvido com isenção, porque não se trata de um organismo político ou politizado. É sério e confiável. Portanto, não deve ser pressionado para oferecer as explicações que interessam ao governo.
Um debate limpo, sem pressões, pode até ser politizado, mas é o que interessa à sociedade.
O apagão, que quase provocou um apagão mental nas hostes do governo Lula, gerou um debate, sobre as deficiências do setor elétrico, mas escondeu outro, felizmente não neglicenciado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”. O jornal paulista, com reportagem de Renée Pereira, publicou que o governo Lula deixou de investir 20 bilhões de reais em infraestrutura entre 2004 e 2008. Foram autorizados investimentos de 72 bilhões mas o governo só conseguiu empenhar 52 bilhões. Sintomaticamente, entre os ministérios que não aplicaram os recursos integralmente está o de Minas e Energia, dirigido por Edison Lobão. Outros são o do Transportes, o de Comunicações, o de Integração Nacional e o de Cidades.
Não falta dinheiro; pelo contrário, sobra. O governo Lula montou uma máquina arrecadadora mais poderosa do que a de Fernando Henrique Cardoso, tanto que os empresários são mantidos sob suspeita — como se fosse fácil ser empresário num país de regras nem sempre muito claras e onde, de alguma forma, ainda impera a “lei da usura” da ética Católica (ter lucro continua a ser pecado). A ameaça da Receita Federal, ancorada pela Polícia Federal, é a espada de Dâmocles do governo Lula sobre a cabeça do empresariado. Mas, se há dinheiro sobrando, tanto no governo quanto no mercado privado, por que os investimentos não são feitos?
Na maioria das vezes, o principal problema é a inexperiência da equipe do presidente Lula — além de os Estados não colaboraram com informações adequadas — na elaboração de projetos. Projetos inadequados dificultam “a aprovação e a realização das obras”, disserem especialistas ao “Estadão”. “Os empreendimentos enfrentam ainda questões burocráticas, dificuldade em aprovar licenças ambientais e questionamentos de órgãos como o Tribunal de Contas da União (TCU) e Ministério Público.”
O “Estadão” aponta outra questão da maior gravidade, que certamente contribuirá para provocar novos blecautes e apagões: “Boa parte dos valores empenhados nem sequer é desembolsada no exercício do orçamento. Ao contrário: alguns podem demorar anos para serem totalmente executados. Isso, sem contar que podem ser cancelados. Entre 2004 e 2008, esse casos somaram R$ 1,4 bilhão”.
No Brasil, e não apenas no governo Lula, “o empenho tem sido uma estratégia para garantir recursos para o ministério no ano seguinte. Se até o último dia de cada ano os valores empenhados não forem pagos, eles devem ser inscritos como restos a pagar. O grande problema é que isso era para ser uma exceção, não uma regra, como tem ocorrido nos últimos anos. ‘Os dados de execução orçamentária do governo chegam a ser dramáticos. Eles não conseguem gastar nem dinheiro que vem de financiamento, que tem incidência de juros’, diz o professor da Fundação Dom Cabral, Caio Marini, especialista em administração pública”.
Se o governo de Lula deixa de investir, contingenciando recursos, a infraestrutura vai para o espaço. Dados do próprio governo indicam que “70% das estradas pavimentadas têm qualidade entre regular e péssima; as ferrovias detêm apenas 29 mil quilômetros de trilhos; os portos estão despreparados para novos navios, que exigem profundidade elevada para atracação; e quase metade dos domicílios não tem acesso a esgoto”. Como se vê, o apagão, ou blecaute, não está ocorrendo tão-somente no setor elétrico. Há uma pane geral no setor de infraestrutura.
O Brasil é, como disse o presidente de Israel, Shimon Peres, ao Jornal Opção, uma potência econômica e está se tornando uma potência política, apesar de a política exterior de Lula ser muito criticada, tanto interna (mais) e externamente (menos). Mas o que Peres e outros não sabem é que a capacidade produtiva do país seria muito maior, se o governo federal — e os estaduais — investisse de modo mais adequado seus fartos recursos. O Brasil poderia ser muito mais competitivo, no feroz enfrentamento comercial com China e Estados Unidos, para ficar em dois exemplos, e ter custos menores.
O presidente da Associação Brasileira de Logística de Transporte de Carga (ABTC), Newton Gibson, disse ao “Estadão” que “a ineficiência do governo na execução orçamentária é resultado da ausência de planejamento nos ministérios ligados à infraestrutura”. Gibson avalia como “lamentável que o governo passe o ano todo adiando investimentos importantes e apenas faça o empenho às vésperas da virada do ano”. A crítica, oriunda do setor produtivo, raramente aparece no discurso da oposição, exceto de modo residual.
Até agosto deste ano, o governo Lula só conseguiu empenhar R$ 12 bilhões dos R$ 32 bilhões do orçamento autorizado para os ministérios citados acima. “De despesa paga, no entanto, foram apenas R$ 2,85 bilhões — ou 8,9% do orçamento total.”
O governo Lula é melhor do que diz a oposição e um pouco pior do que diz o presidente. Lula e Dilma querem travar o debate sobre questões substanciais e a oposição não consegue sair do lugar. É óbvio que à oposição interessa “tomar” o poder do sistema petista, mas, se não articular um discurso mais inteligente, que reflita adequadamente o que espera a sociedade, vai acabar vendo Dilma crescendo, ancorada na popularidade de Lula, e possivelmente se tornando a primeira mulher presidente do país. A impressão que se tem é que os tucanos, sobretudo, e democratas falam para si próprios, enquanto o marketing do governo petista procura “falar” para a média da sociedade. Na questão do apagão, até Lula não acertou, quanto mais Dilma.
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