Editorial
O dia em que Lula demitiu Meirelles
Em 2008, o presidente Lula da Silva praticamente defenestrou o presidente do Banco Central, convocando para seu lugar Luiz Gonzaga Belluzzo.
Como compensação, sugeriu que deveria disputar o governo de Goiás
Edilson Pelikano/Jornal Opção
Henrique Meirelles descobriu, a duras penas, que a lealdade do presidente Lula tem limite
A imprensa tem o hábito de posar de independente, mas raramente é de fato autônoma. A “CartaCapital”, sem dúvida muito bem-feita e inteligente (ou astuta), tem o hábito de se apresentar como o último reduto “livre” da mídia nacional. Não é bem assim. No governo Lula, embora mantenha alguma instância crítica — no caso do terrorista italiano Cesare Battisti, o diretor de redação, Mino Carta, talvez porque tenha nascido na Itália, é um dos mais ardorosos críticos das ações do ministro da Justiça, Tarso Genro —, a revista comporta-se como porta-voz oficioso. Há algum tempo, quando Lula decidiu afastar o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, o assunto apareceu com destaque na capa da publicação fundada pelo patriarca Mino Carta. O substituto esteve praticamente indicado — era o economista e empresário Luiz Gonzaga Belluzzo, um desenvolvimentista. Além de ser presidir o Palmeiras, clube de futebol, Belluzzo é dono da Facamp, uma faculdade de grife, e sócio da “CartaCapital”, o que, na reportagem sobre a provável queda de Meirelles, não foi dito, evidentemente. Se os demais jornais não foram a fundo, e a revista esqueceu seu suposto furo de reportagem, o jornal “Valor Econômico” de sexta-feira, 13, dedicou dez páginas mais a capa do suplemento “Eu&” à recente crise financeira do País. A base do texto é uma explosiva entrevista concedida pelo ex-diretor de política monetária do BC, Mário Torós. Um resumo preciso é o seguinte: o Brasil quase quebrou, ou esteve quebrado, e foi salvo pelos mosqueteiros do BC. Mais, revela-se, com todas as letras, que o presidente Lula praticamente demitiu Meirelles e, pouco depois, voltou atrás. A reportagem provocou a demissão de Torós. Tudo indica que ele sabia que seria demitido e, ao abrir a caixa preta do banco, só antecipou o dia da saída.
Toró significa pancada de chuva, forte aguaceiro. Na Amazônia, toró é um rato. O Torós do BC não é um rato, pois não se esconde nem rói as finanças do país, mas, do ponto de vista de uma interpretação técnica do governo Lula — que, na crise, acertou, mas a maior parte do tempo agiu no escuro —, foi uma tempestade das mais violentas. Torós não caiu porque mentiu ou falsificou dados. Caiu porque revelou a verdade sobre como o grupo de Meirelles agiu para evitar a quebradeira do sistema financeiro do País. Lula e Meirelles não deram autorização para Torós desnudar o governo. No caso de Meirelles, há algo mais: Torós, mesmo sendo seu subordinado, comportava-se, na pressa e prática, como verdadeiro presidente do BC. Porque o presidente oficial estava quase sempre viajando, representando o banco.
Pouco antes da fase mais aguda da crise internacional, o Banco Central, ao constatar que a economia estava superaquecida, decidiu subir os juros. “Apesar da crise lá fora, o País tinha crescido 6,1% no ano anterior [2007], a criação de emprego formal era recorde e o investimento liderava a alta do PIB. Em abril [de 2008], o Comitê de Política Monetária (Copom) promoveu o primeiro aumento de juros em três anos. A decisão teve péssima repercussão no governo”, relatam os repórteres Cristiano Romero e Alex Ribeiro. Um dos principais adversários de Meirelles, o ministro da Fazenda, o desenvolvimentista Guido Mantega, atacou: “Neoliberal tem medo de crescimento”. Era um recado explícito para a turma de Meirelles.
Lula convocou Meirelles e criticou o aumento dos juros. Lula temia que o crescimento da economia fosse abortado. Irritado e nervoso, Meirelles disse aos auxiliares mais próximos: “Vamos sair, não dá mais”. Meirelles não sabia mas o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp e guru dos desenvolvimentistas, havia sido convidado por Lula a assumir o BC. Belluzzo reagiu “positivamente”. Depois, alegando que “o mercado financeiro não aceitaria”, teria dito não à convocação do presidente. O “Valor” apurou, com outras fontes, que “Belluzzo não só teria aceitado, mas também começado a montar sua equipe”.
Como avalia que deve alguma coisa a Meirelles, supostamente responsável pela estabilidade dos primeiros anos do governo e por sua aceitação na área financeira internacional — em tese, o petismo não honraria os compromissos financeiros do País —, Lula decidiu, no lugar de demiti-lo, pura e simplesmente, criar condições para que o banqueiro deixasse o governo sem traumas. “Numa conversa reservada, [Lula] disse a Meirelles que ele não deveria fechar as portas de uma carreira política em Goiás. O presidente do BC entendeu o conselho como algo positivo, mas levou um susto ao ler num jornal, dias depois, informação atribuída a Palácio de que teria ido a Lula comunicar sua candidatura ao governo de Goiás em 2010”.
Meirelles engoliu em seco mas entendeu o recado do presidente. Em abril de 2008, num domingo, Meirelles visitou Lula, no Palácio da Alvorada, “e entregou o cargo”. Mais calmo, livre das pressões dos desenvolvimentistas, como Mantega, Lula recuou: “Esquece esse troço, Meirelles”.
Mas, desde então, Meirelles percebeu que lealdade em política tem limite. O presidente o descartou e, depois, o manteve no cargo sem o mínimo pudor. Mais: Meirelles percebeu que, a rigor, não é o candidato de Lula ao governo de Goiás. O candidato “de” Lula é aquele que tem chance reais ou imaginárias, de derrotar o tucano Marconi Perillo. Em conversas particulares e discursos públicos, Lula elogia o presidente do BC, diz que entende tudo de finanças, mas, politicamente, comporta-se como amador. Meirelles estava preparado para se filiar ao PP do governador Alcides Rodrigues quando foi chamado ao Palácio e recebeu a orientação para se filiar ao PMDB. Lula respeita e gosta do governador Alcides Rodrigues. Mas não se faz política com afetos, e sim com a organização e conexão dos variados interesses. Nas suas conversas com políticos goianos, com seu estilo direto, Lula afirma que, para derrotar Marconi, precisa contar com o apoio do PMDB. Noutras palavras, o candidato da frente anti-Marconi tem de ser, a se aceitar a orientação de Lula, do PMDB. Mas não tem de ser Meirelles. Porque Lula, embora o avalie como fato novo e como capaz de aglutinar mais do que Iris Rezende — que possivelmente não teria o apoio do grupo de Alcides —, percebe que, numa campanha agressiva, em que os candidatos precisam ter muita coragem, Meirelles pode amolecer. Por não ser político, quando atacado mais duramente, por exemplo na intimidade, Meirelles pode desmoronar. A guerra no setor financeiro é pesada, mas transcorre, na maioria das vezes, nos bastidores, sem exposição pública. A guerra eleitoral, pelo contrário, é quase toda pública. Atacado, sobretudo com extrema grosseria, Meirelles pode ficar sem ação. Iris, pelo contrário, não tem qualquer receio de enfrentar uma campanha dura. Está acostumado a se defender e, mesmo, a ignorar determinadas críticas.
A reportagem do “Valor”, com dez páginas, merece, se ampliada, ser transporta para livro. Por dois motivos: porque mostra que o Brasil quase quebrou e que a imprensa não noticiou a verdadeira dimensão da crise. Numa semana de outubro de 2008, “os bancos pequenos e médios sofreram uma corrida bancária com saques totais de R$ 40 bilhões. Um dos maiores fundos de hedge do mundo, o Moore Capital Management, fez um ataque especulativo de US$ 5 bilhões contra o real em dezembro. Com derivativos cambiais, empresas exportadoras e bancos tiveram prejuízos de US$ 10 bilhões — o valor total dos contratos atingiu US$ 38 bilhões, mais de 18% das reservas cambiais do País à época”. Apavorado, Lula, que era contrário ao uso das reservas cambiais para rearrumar o mercado, decidiu utilizá-las, convencido pela turma de Meirelles, “para defender o real”.
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