quarta-feira, 5 de maio de 2010

Família Caiado: resgate histórico!






ARTIGO






Nasr Fayad Chaul


A memória do outro

Poder e Paixão: A Saga dos Caiado tem muitos méritos, talvez o maior deles seja o de recuperar um período importante do processo histórico goiano que ficou meio turvo, meio tendencioso, sem muitas evidências comparativas. Até há pouco tínhamos um lado da História, já bem documentado. Bons estudos foram feitos sobre os anos 30, sobre os governos de Pedro Ludovico e sobre Goiânia. Poucas obras de consistência, porém, sobre os Caiado, além de estudos e análises esparsas, sem a possibilidade necessária de uma História Comparativa ampla, ao nível da produção historiográfica sobre Pedro Ludovico. O livro, ou melhor, os dois preciosos volumes de Lena Castello Branco preenchem essa lacuna.

Lena tenta ao máximo cumprir a sina do historiador compondo uma linha tênue por sobre o objeto, mas o livro é sobre poder e paixão, não há como ficar à margem. A elegância com que trata seu objeto, porém, dirime qualquer dúvida de partidarismo ou tendência pró ou contra a família Caiado. Claro que a ótica é sobre os Caiado, sua recuperação política, suas crises diante do movimento varguista, sua consciência e importância basicamente soterradas pelos arautos dos anos 30. Nós que tanto pesquisamos o período, temos agora um paralelo para avaliar, comparar, conflitar o rico período em tela.

A História de Goiás já fazia por merecer uma obra desse porte, tanto por seu desenvolvimento na última década, como por seu nível de pesquisa documental. Tendo aprofundado estudos em diversos períodos, pode, hoje, revisar parte do processo estudado. É a melhor parte de um processo maduro de produção historiográfica. O estudo desenvolvido pela historiadora Lena Castello Branco Ferreira de Freitas levou mais de uma década de pesquisa e toca em pontos fundamentais da vida familiar, cultural e política de Goiás. É amplo e cobre desde os primórdios da família até a construção de Brasília, embora centrado na Primeira República e na “demonização” de um dos principais líderes políticos do nosso processo histórico: Antônio Ramos Caiado, o Totó Caiado, representante de toda uma saga familiar.

Parte obrigatória de qualquer entendimento que se pretenda sobre a Primeira República em Goiás, sobre os anos 30 e a vida política do Estado pós-30, o livro ilumina novos caminhos, recupera histórias, reinterpreta fatos e documentos e questiona verdades duradouras. A visão dos grupos em ascensão nos anos 30 produziu um pretenso “novo”, desprezou o processo histórico da chamada República Velha, não permitiu o olhar do outro. Lena põe o trem-de-ferro da História em trilhos outros, possibilitando novas paisagens, novas reflexões sobre a família Caiado.

Resgata desde as origens familiares de Manuel Cayado de Souza na região do Beira em Portugal, seu pleito por Sesmarias, concedido em 18 de junho de 1770, e a ligação da família com o mundo rural em seus primórdios. A visão pecuarista de longo alcance de Antônio José Caiado, sua inserção na vida política goiana e a constituição de sua fortuna através do trabalho árduo de décadas.

O centro de todo o processo analisado não poderia deixar de ser Antônio Ramos Caiado, o Totó Caiado, mesmo que a parte sobre seu pai, Torquato, esteja recheada de histórias e memórias. Com Totó, mitos caem por terra, dados novos são tratados, documentos familiares e de arquivos são utilizados possibilitando uma nova visão das décadas de 20 a 60. Contando com farto acervo, inclusive inéditos possibilitados pela família Caiado, Lena analisa um Totó Caiado dimensional. Sua vida, seus amores, suas ligações com a família e com a terra, suas lutas, sua formação e visão de mundo, a defesa de Goiás nas passagens da Coluna Prestes, as articulações políticas, as interligações familiares, as prisões, denúncias, censura e perseguições nas mudanças dos rumos da política. A famosa questão da posse de terras das Fazendas de Thesouras e Aricá ganha nova interpretação e ficamos sabendo como foram legitimadas e como passaram para o imaginário popular. É um relato cinematográfico, auspicioso, informativo, desmistificador. A herança familiar de homens e mulheres, suas ligações com a vida rural e urbana, com a política e com as profissões liberais são, por certo, um retrato de um Goiás.

O trabalho nos assegura, além da recuperação de importante processo histórico na saga dos Caiado, o mais fundamental: “permitir a abertura para a memória do outro”.


Nasr Fayad Chaul é doutor em História Social pela USP e professor titular da Faculdade de História da UFG

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