terça-feira, 25 de maio de 2010

Editorial





                                                                   O Globo
Lula da Silva e Mahmoud Ahmadinejad não são ingênuos, mas o jogo do primeiro não depende apenas da força do Brasil, que não é páreo para o poder dos Estados Unidos


A bomba brasileira e a bomba iraniana
No caso do Irã, o Brasil prova que é player internacional, mas Lula superdimensionou sua força. O projeto Ficha Limpa, sugere presidente do TSE, pode se tornar uma anistia para “crimes” passados

O presidente Lula da Silva é uma presença internacional de peso, porque o Brasil, potência econômica e estratégica, terá cada vez mais presença nos debates além-fronteiras. O país se tornou um “jogador” que, como a China, terá de ser ouvido. O problema é que, quando se analisa a questão, fala-se mais em Lula, o dirigente político, do que no Brasil. Assim, entram em jogo posições políticas e ideológicas. Ressalve-se, porém, que o presidente, talvez por falta de orientação do Itamarati, que deveria ser menos subserviente e politizado, trata-se como se fosse o Estado, e não um representante-gestor temporário. Possivelmente, interesses pessoais e partidários misturados a interesses estratégicos. O caso do Irã é exemplar.

Lembremos um fato ocorrido entre as décadas de 1970 e 1980. Quando o grupo do aiatolá Khomeini derrubou o xá Reza Pahlevi, em 1979, travando a modernização do país e tornando-o mais tradicionalista, a esquerda brasileira o aplaudiu. Um grupo de intelectuais e jornalistas consagrados publicou um livro para enaltecer a “Revolução Iraniana”. Logo depois, quando os aliados de Khomeini instalaram um regime autoritário, e talvez totalitário, os democratas do mundo inteiro protestaram, mas, na terra de Luiz Carlos Prestes e João Amazonas, a esquerda silenciou. O apoio a Khomeini e o silêncio da esquerda são justificados pela tese de que os fins justificam os meios. O ocidentalizado Pahlevi era pró-norte-americano. A lógica irretorquível: “Se é inimigo dos Estados Unidos, Khomeini é nosso amigo”. É a mesma lógica com a qual Lula e os petistas atacam os dissidentes cubanos e apoiam o governo da dinastia que castra a liberdade em Cuba.

Sem controle, o Irã quer e, se não for contido, vai fazer a bomba nuclear. Com uma área gigantesca (1.648.195 quilômetros quadrados) e uma população de 74,2 milhões — Israel tem 20.700 quilômetros quadrados (menor do que Sergipe; Goiás é 18 vezes maior do que o país dos judeus) e 7,2 milhões de habitantes —, o Irã é uma das potências dominantes no Oriente Médio, tanto em termos econômico quanto político e religioso. Mas quer ser muito mais do que isto. Planeja ser a potência hegemônica, acima de Israel, na verdade, a única ameaça ao seu poderio.

Os diplomatas e políticos que orientam Lula, e tampouco Lula, não são néscios. Lula pode estar pensando em ganhos pessoais, como o Prêmio Nobel da Paz, por ter “resolvido” a questão nuclear do Irã, ou seja, por ter contribuído para “pacificar” a região. É possível também que, enquanto resguarda-se para futuro embate eleitoral em 2014, Lula pense em obter mais projeção internacional a partir da ONU. Fala-se que é cotado para secretário-geral, o que talvez seja um exagero plantado na mídia por seus aliados.

Se Lula não é inocente — em política não há inocentes, só realistas, absolutos ou relativos —, por que entrou no jogo do Irã? Na verdade, não entrou, como muitos pensam. Lula e sua equipe estão fazendo um jogo arriscado, tentando fincar pé no Oriente Médio — aliás, em todo o Oriente —, como um jogador que, teoricamente, teria o mesmo peso de um player experimentado, os Estados Unidos. O acordo patrocinado pelo Brasil, que envolve Irã e Turquia, foi desmontado, no dia seguinte, por alguns telefonemas da secretária de Estado americana, Hillary Clinton. China e Rússia, que têm simpatia pelo Brasil, porque, no fundo, são anti-americanas, tiveram de compor com os Estados Unidos. Os negócios comerciais e estratégicos calaram mais fundo do que possíveis simpatias políticas. O resultado é que o Brasil, embora seja um player, ainda não tem a musculatura necessária para estabelecer acordos mundiais sem a mediação de outras potências, sobretudo dos EUA.

Os teóricos e diplomatas do governo Lula, os que estão mais à esquerda, parecem acreditar que, como Israel é o parceiro político prioritário dos Estados Unidos no Oriente Médio, o Brasil poderia escolher seu parceiro, o Irã. Seria um caminho para mais negócios no Oriente Médio, já que, direta e indiretamente, o Irã, no afã de atacar Israel, tem muita influência na região. O erro de Lula, se foi erro, talvez tenha sido não perceber que o Irã quer fazer a bomba e é, em si, uma bomba. Uma bomba que não pode ser desmontada com acordos. Como se sabe, acordos são feitos para serem cumpridos, mas frequentemente não são cumpridos, parcial ou integralmente.

Mas uma coisa é certa: o Brasil é um player na política internacional, apesar da suposta gafe de Lula e seus luas-vermelhas, como Celso Amorim. Só precisa jogar, ainda que com ousadia, com mais habilidade e, sempre, com cautela.


Paraíso tropical

Se Lula administrou mal, ainda que ganhando destaque internacional, o vespeiro iraniano — energia nuclear na mãos de fanáticos políticos e religiosos não é brincadeira —, há outra bomba para montar ou, se for o caso, desmontar: o projeto Ficha Suja ou Ficha Limpa, aprovado na semana passada pelo Senado.

O Brasil é assim. Demora anos para resolver um problema sério, como afastar os políticos que têm problemas judiciais graves, mas, quando tenta fazê-lo, o faz de forma atabalhoada. Na semana passada, ao examinar o projeto Ficha Limpa, procuradores de Justiça, senadores e juristas apresentaram argumentos diferentes e, algumas vezes, parecidos com os dos aiatolás iranianos. Julgamentos peremptórios costumam ser contestados e, às vezes, derrubados na Justiça. As leis são feitas para serem cumpridas, mas permitem interpretações. O projeto da Ficha Limpa, antes de virar lei, ou seja, de ser sancionado pelo presidente da República, já está sendo interpretado e, fundamentalmente, contestado.

Na sexta-feira, 21, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ricardo Lewandowski pôs lenha na fogueira dos peremptórios: “Se prevalecer a redação [do projeto], a meu ver, sem conhecer o texto ainda, é só [para] aqueles que forem condenados depois da promulgação da lei. É a leitura que se faz, pelo menos, gramatical”. O texto da Câmara enviado ao Senado frisava que seriam inelegíveis aqueles políticos que haviam sido “condenados”. O senador Francisco Dornelles (PP) mudou o texto, que agora cita candidatos que “forem condenados”. A dúvida do ministro tem a ver com esta redação. Não se trata de um problema meramente de gramática, embora alguns políticos pareçam ter sido alfabetizados pelo Mobral.

O que Lewandowski está dizendo, de modo enviesado, é que, se o projeto continuar como foi aprovado pelo Senado, “os políticos só ficarão inelegíveis se forem condenados na Justiça depois da promulgação da lei”. Noutras palavras, o projeto se tornará uma espécie de anistia para crimes passados. Apaga-se toda a vida pregressa dos políticos venais e começa tudo do zero. É mole, como dizem os jovens?Apesar das dúvidas do ministro, um dos mais gabaritados, o projeto aprovado pelo Senado é menos confuso do que parece. Os políticos condenados na Justiça, se tiverem sido condenados por um colegiado — mais de um juiz —, não poderão disputar eleições a partir de agora. Por concordar com o “espírito” do Ficha Limpa, o presidente Lula diz que vai sancioná-lo, no início de junho.

O projeto valerá para a eleição de 3 de outubro deste ano ou apenas a partir de 2012, quando ocorrerão as eleições municipais? Sancionado, vai inviabilizar a candidatura do político condenado antes da promulgação? Lewandowski, que está estudando a essência e as filigranas do projeto, garante que dará respostas às dúvidas “o mais rápido possível”.

Pela atual interpretação de Lewandowski, Paulo Maluf (PP), ainda que condenado por um colegiado de magistrados, poderá ser candidato em outubro. Assim como José Tatico.

As primeiras contestações são do senador Demóstenes Torres (DEM), relator do Ficha Limpa. Procurador de justiça licenciado, especialista em Direito, Torres sustenta que a lei vai valer, sim, “para os casos anteriores”. “O texto tinha dois tempos verbais e tínhamos que harmonizar porque estava uma balbúrdia”, frisa o senador.

Há outro problema, descartado por Torres, mas não por advogados especializados. A Constituição afiança que uma alteração no processo eleitoral deve ser feita um ano antes do pleito. A nova lei pode valer para este pleito se o TSE entendê-la como “uma norma a ser seguida pelo candidato e que nada tenha a ver com esse processo”. Assim, entraria em vigor logo que sancionada. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, garante que vai defender sua validade imediatamente.

A lei vai limpar a política das corrupções eleitorais? Pode até diminui-las. Porque leis, e não apenas no Brasil, são regras civilizatórias — assim como “não matar” —, mas são descumpridas parcial ou integralmente. A Ficha Limpa é um avanço, sem dúvida, mas não cria o paraíso na Terra. Quem acredita no paraíso terrestre criado por leis acaba por se tornar um decepcionado permanente. A sociedade, ao contrário da tecnologia, muda aos poucos, e aos trancos e barrancos. Por que a confusão em torno da “bomba” Ficha Limpa? Porque é uma mudança de mentalidade. E mudar mentalidade é sempre muito lento, sabem iranianos, israelenses e brasileiros.

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