terça-feira, 22 de junho de 2010

José Saramago: encantado!






ARTIGO


José encantou-se

Marcos Fayad

Quando um escritor morre é um mundo que desaparece. Sob o vazio pela morte do meu escritor preferido, renovo a premissa de que algumas coisas estão erradas por aqui desde a criação do mundo. Por exemplo: morrer devia ser por ordem de prioridades. Quem estivesse aqui fazendo o bem ou ampliando nossa capacidade de usar mais a inteligência emocional que a razão deveria permanecer vivo. Era o caso do José Saramago, que tinha 87 anos e poderia chegar aos 120 com a mesma lucidez com que nos alertava pra necessidade de pensar, como escreveu em seu blog quatro horas antes de morrer. E outros, esses inúteis, ladrões, medíocres iriam embora mais cedo deixando o mundo cada vez melhor porque sem a presença deles.

Homens como Saramago teriam mais espaço e vida pra continuar escrevendo tudo o que escreveu e nos incentivando a viver melhor. O povo sabe o que diz quando diz: vaso ruim não quebra, pra explicar por que só morrem pessoas maravilhosas e os piores da espécie ficam vivos.

Saramago mesmo já tinha dito que alguns não fazem a menor ideia do prazer e da importância de viver a cada dia: "Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro pra uns e será o último pra outros e que, pra grande maioria, é só um dia a mais". Amava a vida com tal consciência que jamais deveria ir, ou pelo menos não ainda. Quem conviveu com ele através de seus muitos livros sente sua morte como quem sente a dor de perder um ente muito querido, aquele avozinho que nos contou histórias incríveis. Fica-se mais sensível e pode-se compreender melhor as dores diárias de um mundo cruel e brutal quando se lê esta sua frase: "... se você tem um coração de ferro, bom proveito. O meu fizeram-no de carne e sangra todos os dias".

Saramago revirou todos os velhos conceitos sobre Deus, plantou dúvidas irreversíveis nas cabeças de quem leu o seu O Evangelho Segundo Jesus Cristo e recentemente Caim, mas é impossível não concordar com ele em relação às religiões. Causa alívio ler o que ele pensava sobre a igreja onde quase todos fomos educados com as ameaças pairando sobre as cabeças de crianças. Um Deus punitivo, vingativo que podia condenar os desobedientes a arder num fogo eterno. Todos acreditavam nisso. Estas palavras dele libertaram definitivamente de qualquer culpa os que tiveram coragem de romper com aqueles laços insanos: "Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle, não tanto das almas, porque à igreja não importam as almas, mas dos corpos. O sonho da igreja sempre foi nos transformar em eunucos. A Bíblia foi escrita ao longo de 2 mil anos e não é um livro que se possa deixar nas mãos de um inocente. Só tem maus conselhos, assassinatos, incestos... as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais".

Aqueles que têm coragem de dizer publicamente o que pensam sobre o assunto devem isso a ele. Sofro daquela solidão profunda e arraigada de que ele fala em seus livros e que poucas, muito poucas pessoas são capazes de amenizar. Sentia-me acompanhado todas as milhares de vezes que o lia. Foi ele que reforçou nosso aprendizado de pensar e nos deliciar com o fato de estarmos vivos e poder admirar tantas belezas do mundo porque seu prazer de viver transparecia em tudo o que escreveu. Achava que nós não merecemos a vida e nem é preciso concordar ou discordar dele, basta apenas abrir os jornais de manhã ou assistir um telejornal de noite pra comprovarmos o quanto ele tinha razão, o quanto a vida poderia ser mais leve e bonita do que a fazemos diariamente.

Apontou com o dedo em riste, como era seu costume, o monstro que habita dentro de nós e como ele é que rege a vida diária das pessoas no mundo todo. As guerras são apenas a parte visível do monstro: "Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem. O animal, para se alimentar, tem que matar o outro animal. Mas nós não, nós matamos por prazer, por gosto. Se fizermos um cálculo de quantos delinquentes vivem no mundo, deve ser um número fabuloso. Vivemos na violência. Não usamos a razão para defender a vida; usamos a razão para destruí-la de todas as maneiras - no plano privado e no plano público." Esse homem morreu...

O povo é que tem razão: pra nosso azar os vasos ruins não quebram.


Marcos Fayad é ator e diretor de teatro bomcombate@uol.com.br

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