segunda-feira, 22 de março de 2010

Água: patrimônio da humanidade!

 













 



 
Erosão na região de Mineiros, onde o Aquífero Guarani tem águas expostas

Dia mundial da água

Em busca do tesouro subterrâneo
Escassez dos mananciais já obriga Goiás a explorar intensamente águas profundas

Vinicius Jorge Sassine

A escassez de água para consumo, os altos índices de contaminação dos principais mananciais e os custos elevados para tratamento levam a uma exploração intensa em Goiás de fontes subterrâneas de água, em especial do Aquífero Guarani, um reservatório gigante que, até há bem pouco tempo, não passava de uma citação nos livros de geografia. O aquífero já abastece cidades no sul e no sudoeste goianos, por onde ele se estende, atendendo a demandas do turismo, da indústria, da agropecuária e do próprio consumo humano. A preocupação, agora, é com o uso intenso do Guarani e com a contaminação por agrotóxicos dos poços abertos e dos locais onde ele aflora, principalmente nas regiões de Mineiros e de Jataí.

Uma pesquisa da Universidade de Brasília (Unb), concluída em dezembro do ano passado pelo professor de Hidrogeologia José Eloi Guimarães Campos, mapeou onde a água do Aquífero Guarani já é intensamente utilizada. Antes do levantamento, o que se sabia era de um uso recorrente em São Paulo e no Paraná, principalmente. O estudo da Unb identificou pelo menos sete cidades goianas que fazem uso dessas águas subterrâneas em atividades econômicas ou para consumo dos moradores. O POPULAR apurou que outras três cidades, não citadas na pesquisa da Unb, também já exploram o Aquífero Guarani.

As usinas de açúcar e álcool Boa Vista e São Francisco, em Quirinópolis, perfuraram profundos poços em busca de uma água de qualidade. Para isso, chegaram até o Aquífero Guarani, conforme o levantamento do pesquisador da Unb. Outra usina de álcool, em São Simão, também explora as águas do Guarani. Em Mineiros, o uso também é econômico: grandes criadouros de suínos e de aves dependem exclusivamente do aquífero. “E esse uso está em ampla expansão”, afirma o professor José Eloi, doutor em Geologia. Um assentamento que abriga pessoas atingidas por barragens na região de Caçu perfurou um poço para chegar até as águas do Guarani.

O aproveitamento turístico também tem avançado, em razão das águas termais oferecidas pelo reservatório. O principal atrativo de Lagoa Santa, o lago de águas quentes existente na cidade, é abastecido pelo Guarani. A cidade de pouco mais de 2 mil habitantes não usa água de mananciais superficiais, somente do aquífero. Em Cachoeira Dourada, a água também é quente, mas muito salgada, rica em sódio e cálcio. Se não é apropriada para o consumo, abastece os clubes da cidade. Mineiros e Jataí têm acesso ao Guarani sem precisar perfurar poços muito profundos. Nas duas cidades, o aqüífero aflora no solo.

“Os maiores usuários em Goiás são as usinas de álcool. Noventa por cento da área do Guarani é recoberta por basalto, e é preciso fazer perfurações de até 800 metros, o que é muito caro”, afirma o pesquisador da Unb José Eloi. “Um único poço pode custar até R$ 1 milhão.” Mesmo com o alto custo para se chegar às águas do Guarani, tem sido mais vantajoso para usinas explorar o aquífero em vez de mananciais superficiais, principalmente em razão da qualidade da água e da longa distância para captações em ribeirões da região. “Na maior parte da área de ocorrência em Goiás, o Aquífero Guarani apresenta boa qualidade química”, diz José Eloi.

Outras fontes subterrâneas vêm sendo intensamente exploradas em Goiás. A Secretaria Estadual do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh) já concedeu mais de mil outorgas para extração de água subterrânea, num ritmo crescente de autorizações. “Os pedidos são cada vez maiores por causa da qualidade da água. É uma estratégia quando a água dos ribeirões está escassa e distante”, ressalta o superintendente de Recursos Hídricos da Semarh, Harlen Inácio dos Santos. Cidades no nordeste do Estado são abastecidas por outro reservatório, o Aquífero Urucuia, que se estende principalmente pela Bahia e por Minas Gerais.

Pureza leva à extração cada vez mais profunda

Vinícius Jorge Sassine

O Aquífero Guarani é um dos maiores reservatórios de água doce do mundo e se espalha por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai (veja quadro na página 3). Oito Estados brasileiros contam com a reserva. São 44,7 mil quilômetros quadrados em Goiás, o equivalente a 60 cidades do tamanho de Goiânia.

O que despertou uma corrida pelas reservas é a qualidade da água, que praticamente dispensa tratamento. “No Centro-Oeste brasileiro, a água do Guarani tem ótima qualidade, e é obviamente melhor do que a da superfície, onde se joga esgoto o tempo inteiro”, afirma o engenheiro Luiz Amore, secretário geral do Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani, desenvolvido entre 2003 e 2009 com dinheiro do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF, sigla em inglês), do Banco Mundial. “Todas as análises da qualidade da água mostraram índices dentro do permitido.”

A região do aquífero tem 8 mil poços perfurados, dos quais 1,8 mil chegam até as águas. “No interior do Mato Grosso do Sul, todas as cidades são abastecidas pelo reservatório”, diz Luiz Amore. Mais de 500 municípios brasileiros dependem dele para abastecimento. Em Ribeirão Preto (SP), o uso é intenso desde a década de 70. Bombasmodernas aprofundaram os poços existentes e, hoje, a cidade corre risco de desabastecimento. No centro do município, o nível do reservatório sofreu um rebaixamento de 60 metros.


Uso de agrotóxicos já é ameaça real ao reservatório em Goiás
Situação é mais perigosa na divisa com o Mato Grosso, onde há nascentes do Araguaia

Vinícius Jorge Sassine

A contaminação das águas do Aquífero Guarani traria prejuízos ambientais bem mais severos do que a poluição de mananciais superficiais, se for levada em conta a impossível missão de despoluir um reservatório em grandes profundidades. O maior risco, identificado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), num estudo do ano passado em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), é a contaminação por agrotóxicos das áreas de afloramento do aquífero bem próximas à superfície. Em Goiás, o aquífero aflora em Jataí e Mineiros, regiões com intensa atividade agropecuária e com largo uso de agrotóxicos.

As nascentes do Rio Araguaia na região de Mineiros serviram de base para a pesquisa da Unicamp e da Embrapa. Os pesquisadores coletaram amostras da água e do solo na Fazenda Chitolina, que sofre com grandes erosões. O principal risco está nas culturas de soja e de milho na divisa de Goiás com Mato Grosso. Também ameaçam o Aquífero Guarani os agrotóxicos provenientes da cultura de cana-de-açúcar, em São Paulo, de milho, no Paraná, de maçã, em Santa Catarina, e de arroz, no Rio Grande do Sul.

“Apenas 0,1% do agrotóxico aplicado atinge o seu alvo, e o restante contamina solo, água e ar”, diz a pesquisadora Lais Sayuri, responsável pelo estudo feito a partir de amostras coletadas na região das nascentes do Rio Araguaia. Lais entrevistou os produtores de soja e milho para identificar quais agrotóxicos são mais utilizados e quais deles têm maior chance de infiltração no solo e contaminação do Aquífero Guarani.

A conclusão do estudo é que o uso de defensivos agrícolas pode atingir “níveis críticos” nas plantações de soja e milho, um risco real ao aqüífero nas regiões onde o reservatório aflora, como é o caso de Mineiros. As áreas de recarga do Guarani precisam ser monitoradas constantemente, como conclui a pesquisa.

O professor de Hidrogeologia da Universidade de Brasília (Unb) José Eloi Guimarães Campos, responsável pelo estudo que mapeou a exploração em curso do Aquífero Guarani, diz que não há dados que já comprovem a contaminação do reservatório. Mas ele faz um alerta. “Há um risco efetivo de contaminação do aquífero em área de exposição dos arenitos à agricultura e à suinocultura, em Jataí e Mineiros.”

Um indicativo da importância do Aquífero Guarani é a vazão de água do reservatório, se comparada a outras reservas subterrâneas. A vazão média no aquífero é de 100 mil a 150 mil litros de água por hora. Um poço cavado em Goiânia, por exemplo, rende de 5 mil a 7 mil litros de água por hora. “Goiás tem uma vantagem competitiva enorme por causa do aquífero”, afirma o superintendente de Geologia e Mineração da Secretaria Estadual de Indústria e Comércio (SIC), Luiz Fernando Magalhães, que foi coordenador regional do projeto financiado pelo Banco Mundial.

Exploração passou a ser necessidade

Vinícius Jorge Sassine

Luiz Fernando

Recorrer a fontes de água subterrânea, principalmente a reservatórios intocados até há bem pouco tempo, como o Aquífero Guarani, passou a ser uma necessidade. Mananciais estratégicos para o abastecimento das grandes cidades estão ameaçados pelo desmatamento da vegetação e pela contaminação das águas - favorecida pela própria devastação -, o que vem motivando novas alternativas de abastecimento, principalmente para uso pela indústria e pela agropecuária. A escassez é um dos principais alertas no Dia Mundial da Água, celebrado hoje.

O que acontece com o Ribeirão João Leite, na Grande Goiânia, resume essa situação. A barragem recém-construída pretende assegurar o fornecimento de água à capital e Região Metropolitana nas próximas décadas, mas a área de preservação ambiental (APA) do João Leite é uma das mais devastadas em Goiás. Entre 2002 e 2008, mais de 14 quilômetros quadrados de Cerrado dentro da APA foram devastados, como mostra um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama).

Fora da APA, na faixa dos 10 quilômetros adjacentes, mais 1,5 quilômetro de vegetação nativa foi desmatado entre 2002 e 2009. Restam apenas 10% de mata nativa nas bordas da APA onde está o Ribeirão João Leite. Testes de qualidade da água mostram índices de contaminação preocupantes, que exigem grandes investimentos em tratamento.

Em todo o Cerrado, responsável por 71% da água superficial na bacia hidrográfica Tocantins-Araguaia, 71% na bacia Paraná-Paraguai e até 94% na bacia do Rio São Francisco, os índices de devastação nas regiões das nascentes e dos principais mananciais comprometem o abastecimento de água. Um levantamento do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig) da Universidade Federal de Goiás (UFG) mostra que 3,1 mil microbacias foram devastadas em mais de 70%. Isso significa que de cada dez microbacias do bioma, duas perderam mais de 70% da vegetação.

A situação é ainda pior nas microbacias de Goiás e do Distrito Federal, as unidades da federação onde o Cerrado está mais devastado.

De cada dez microbacias, cinco sofreram um desmatamento superior a 70% da área, ou seja, não foram respeitadas nem as reservas legais (20% da área, conforme a lei) nem as áreas de preservação permanente (APPs), que devem ocupar 10% em uma propriedade rural.


“Goiás é a quarta área de ocorrência do Aquífero Guarani no País. É uma reserva estratégica, que poderá ser utilizada se houver acentuado consumo e escassez”.

Luiz Fernando Magalhães, superintendente de Geologia e Mineração da Secretaria de Indústria e Comércio


Lagoa Santa, no Sudoeste goiano: águas termais vêm do Aquífero Guarani

Utilização vai do turismo à indústria

Agências Estado e O Globo

O Aquífero Guarani é a razão da existência de uma cidade goiana: Lagoa Santa, a 420 quilômetros de Goiânia. A cidade tem pouco mais de 2 mil habitantes, mas recebe milhares de turistas em busca das águas quentes da lagoa que dá nome ao município. A temperatura da água, proveniente do aquífero, varia entre 29 e 31 graus Celsius. “É a mesma temperatura desde sempre”, diz o prefeito da cidade, Álvaro Conrado Francisco. Ele é dono de um hotel em Lagoa Santa. Ao todo, são 40 hotéis, pousadas e casas de aluguel que dependem do atrativo turístico.

O prefeito conta que seis poços já foram perfurados na cidade, com profundidade de 150 metros. “A água, limpa e transparente, jorra sem bomba.” Outros poços foram lacrados por falta de autorização. Álvaro Conrado afirma que a abertura de mais poços pode levar a uma diminuição da pressão da água e, com isso, comprometer a lagoa.

Poços mais profundos, em busca da água do Guarani, foram cavados nas usinas Boa Vista e São Francisco, em Quirinópolis, no Sudoeste goiano. A água também chega à superfície em alta temperatura, em torno de 45 graus Celsius, e muitas vezes precisa ser resfriada. “É uma água potável, que quase não precisa de tratamento”, afirma o consultor técnico da Usina São Francisco, José Ieda Neto. Ele diz que a usina utiliza a água captada do Rio São Francisco, distante oito quilômetros da indústria, e, há quatro anos, tem à disposição a água do Guarani. “Os custos de captação são parecidos.”

Qualidade

O diferencial está na qualidade da água, usada nas caldeiras e como matéria-prima no processo de produção industrial. Somente a água que vai para as caldeiras recebe tratamento, para diminuir a quantidade de sais presentes. O poço, de 300 metros de profundidade, é utilizado no período de safra e, segundo José Ieda, dá “segurança” à usina. “O aquífero é um complemento”, afirma.

O superintendente de Recursos Hídricos da Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh), Harlen Inácio dos Santos, minimiza a dimensão da exploração que já é feita do Aquífero Guarani e a própria importância do reservatório para o abastecimento em Goiás. “O aquífero se estende por uma pequena parte do Estado e não é viável perfurá-lo, em razão das profundidades altíssimas. Há um número limitado de outorgas no Sudoeste goiano.” O superintendente de Geologia e Mineração da Secretaria de Indústria e Comércio (SIC), Luiz Fernando Magalhães, discorda. “Goiás é a quarta área de ocorrência do aquífero. É uma reserva de água estratégica, que poderá ser utilizada se houver acentuado consumo e escassez”, afirma.

Luiz Fernando ressalta que a demanda por água é crescente, principalmente por indústrias que precisam de água com qualidade no processo de produção. “É preciso ter consciência da capacidade de exploração do Aquífero Guarani, que funciona como uma grande caixa d’água. Quando os aquíferos são utilizados, em qualquer parte do mundo, é em razão de escassez.”

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