terça-feira, 5 de janeiro de 2010

03 de janeiro de 2010

O Popular

Artigo

A contradição do STF

Inobstante o senhor Fernando Sarney ter, à última hora desistido da ação que havia movido contra o jornal O Estado de S. Paulo, cabe aqui uma consideração sobre o andamento que esse processo teve no Supremo Tribunal Federal (STF). Ao julgar a Arguição de descumprimento de preceito constitucional fundamental (ADPF), em face da Lei de Imprensa 5.250/67 - verdadeiro entulho do autoritarismo de 1964 - o STF deixou claro que estava definitivamente extirpada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Este foi um julgamento que fortaleceu o pluralismo político como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Como autêntico guardião da Constituição, o Supremo levou em conta que ela não só assegura a livre manifestação do pensamento, mas também proíbe o legislador de elaborar qualquer lei que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de informação.

Entretanto, no julgamento da reclamação apresentada pelo advogado do Estado, com o objetivo precípuo de garantir a autoridade da sua primeira decisão, que pusera fim à censura ao declarar a inconstitucionalidade de todo texto da velha Lei de Imprensa, o STF retrocedeu e deixou em aberto a possibilidade de magistrados imporem a censura prévia nos órgãos de imprensa do País.

Lamentavelmente, nessa última decisão, o Supremo não discutiu a censura prévia imposta ao Estado, que há mais de cem dias está proibido, por força de uma decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, de publicar informações sobre a operação Boi Barrica, da Polícia Federal, que tem como principal investigado o empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney.

São duas decisões contraditórias: uma extingue a censura e a outra a ressuscita. Essas decisões proferidas pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, denominado reverentemente pelos advogados “o oráculo da Constituição”, ensejam incerteza e insegurança para a cidadania e para os veículos de comunicação social. Além do mais, é um atentado ao Estado Democrático de Direito que tem, entre os seus pressupostos, a liberdade de imprensa e o respeito à força normativa da Constituição.

No âmbito da Ciência Política e do Direito Constitucional contemporâneos, essa contradição do Supremo Tribunal Federal reforça a tese de que ele não é uma Corte Constitucional, apesar de a Constituição de 1988 ter ampliado a sua competência para julgar questões de natureza constitucional. Todavia, não foi alterada a forma de recrutamento dos seus membros, cuja escolha é ainda feita pelo Presidente da República com a aprovação do Senado Federal. Esse procedimento é próprio de um presidencialismo imperial e autoritário que, por vezes, não respeita o princípio da separação e independência dos poderes. E, além do mais, essa modalidade de recrutamento dos ministros contribui para que matérias essencialmente constitucionais sejam examinadas com um critério apenas e meramente técnico-jurídico. Esse foi o entendimento que prevaleceu na decisão que manteve a censura ao jornal O Estado de S. Paulo, sob o argumento de que a Reclamação em exame não era processualmente adequada.

Apesar disso, o texto constitucional vigente no artigo 102 afirma que ao Supremo Tribunal Federal compete precipuamente a guarda da Constituição. Como explicar o papel político desempenhado pelo guardião, em face de seu recente julgamento que manteve a censura, quando a Constituição terminantemente a proíbe? O guardião tem de entender que guardar não é apenas velar pela estrutura lógico-jurídica do texto constitucional. Ao contrário, é guardar os valores constitucionais e não apenas a forma. A propósito, disse o professor José Afonso da Silva, ao criticar a atual estrutura do Supremo, que não é fácil conciliar uma função típica de guarda dos valores constitucionais, pois guardar a forma ou apenas tecnicamente é falsear a realidade constitucional.

Enfim, o cidadão brasileiro espera que o STF, no exercício de um papel político relevante, sem receios de qualquer crítica a um ativismo judicial e sem aderir ao culto do parnasianismo da forma, seja realmente o guardião dos valores constitucionais, ajustando, assim, a Constituição ‘folha de papel’ à Constituição real.

Jônathas Silva é advogado e professor da Faculdade de Direito da UFG

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