ENTREVISTA
Edilson Pelikano/Jornal Opção
IBSEN PINHEIRO
“Minha emenda dá mais R$ 544 milhões a Goiás”
Deputado do Rio Grande do Sul, ex-presidente da Câmara dos Deputados, defende proposta de redistribuição de royalties da exploração do petróleo para favorecer Estados não produtores
“Apesar de estar com todos os partidos que ganham o poder, o PMDB é um partido horizontal, que ocupa todo o espaço nacional, e por isso tem papel crucial na preservação das instituições.” A opinião é de um dos políticos mais preparados do País, o gaúcho de São Borja Ibsen Pinheiro, deputado federal do PMDB. Segundo ele, a divisão de seu partido em relação à eleição presidencial é um fato, em que pese a posição majoritária pela aliança com o PT. “A convenção do PMDB provavelmente vai definir mais o tempo de TV do que a destinação dos votos. Seja qual for a definição da convenção, os votos terão mais ou menos o mesmo destino, isto é, a divisão.”
Ibsen Pinheiro diz que o grande mérito do governo Lula foi manter o Brasil no caminho que tinha sido descoberto dez anos antes. “O Brasil de hoje é produto da redemocratização e da estabilidade econômica que o Plano Real trouxe. É uma herança bendita. O governo Lula teve o grande mérito de não cumprir as promessas petistas de campanha. A radicalização ficou no discurso.”
O deputado fala também de outros assuntos, como a importância do Congresso, atuação institucional, corrupção, eleição em seu Estado, entre outros temas. Ibsen Pinheiro, 74 anos, é jornalista, advogado, dirigente esportivo e procurador de Justiça aposentado. Foi vereador, deputado estadual, e é deputado federal há vários mandatos. Foi presidente da Câmara dos Deputados — função na qual deu início ao processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992 — e chegou a ocupar interinamente a Presidência da República. Ibsen viveu um período de ostracismo, quando foi acusado de envolvimento com a “máfia dos anões”, que tirava dinheiro do erário através de artifícios com emendas ao orçamento da União. Foi absolvido de todas as acusações e deu a volta por cima. Na terça-feira, 2, recebeu o Jornal Opção em seu gabinete, em Brasília, para a entrevista que segue.
Cezar Santos — O tema mais polêmico no Congresso hoje é a emenda de sua autoria e do deputado Humberto Souto (PPS-MG) que trata da redivisão de royalties do petróleo, ou seja, aquilo que os Estados vão receber. Sua proposta é diferente do que propõe o governo. O sr. tem números específicos sobre Goiás?
Dividi os números em três colunas, uma com a situação na proposta do governo, outra com a aprovação da emenda e uma terceira quando entrar em atividade a exploração do pré-sal, com previsão de cinco, seis anos. Em Goiás o número atual é de R$ 24 milhões, dentro da proposta do governo. Com a nossa emenda, Goiás passará a receber R$ 227 milhões, cerca de nove vezes mais, e com a exploração do pré-sal já licitado — não daquele futuro pré-sal, é dos 28% do que já foi licitado e está praticamente em fase de exploração — vai para R$ 568 milhões. A diferença entre o primeiro número e o último é de mais de 20 vezes, são R$ 544 milhões a mais para Goiás por ano.
Cezar Santos — Na semana passada foi retomada a votação da emenda em plenário. Para quando o sr. espera a definição?
Essa matéria será votada na quarta-feira, dia 10, em votação nominal. Um acordo foi feito entre os autores da emenda, o líder do governo, os partidos da maioria e os partidos de oposição. Logo é um acordo geral, sobre procedimento. Sobre conteúdo não tem acordo, cada um vai votar de acordo com sua consciência e interesse de seu Estado.
Cezar Santos — Há expectativa de definição este ano ainda?
Acho que na Câmara na quarta-feira que vem. O projeto fica pronto com a aprovação ou com a rejeição da emenda, aí vai para o Senado.
Cezar Santos — Há um claro descontentamento dos Estados produtores: São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Pode-se dizer que foi aberta uma guerra entre estes Estados e os outros que não produzem petróleo?
Não. Uma guerra é um exagero. Acredito que está havendo uma reação compreensível dos que vão perder um privilégio. São Paulo, de R$ 267 milhões, passará para R$ 830 milhões, e depois para R$ 2 bilhões, então não perde. Na verdade, perdem Rio de Janeiro e Espírito Santo. E 25 Estados, incluindo o Distrito Federal, ganham.
Cezar Santos — O governador Sérgio Cabral (PMDB-RJ), que é de seu partido, reagiu afirmando que sua emenda é absurda e caricata.
O governador defende seu Estado, o que é compreensível. E não poderia esperar que ele apontasse a injustiça do modelo atual, porque é muito difícil que os beneficiários de uma injustiça, percebendo isso, denunciem. O Brasil não se regula, com toda a importância que tem o Rio de Janeiro, por um só Estado. Tem que se regular pelos 27.
Cezar Santos — Cabral disse que sua emenda não será aprovada e caso isso ocorra o presidente Lula vai vetar.
Não acho que ele seja o porta-voz do presidente Lula. O poder de veto dele é em relação à Assembleia Legislativa de seu Estado. Se a matéria for aprovada na Câmara e no Senado, vamos aguardar a posição do presidente.
Inã Zoé — Em que critério o sr. se baseou para chegar a esses números, de 30% para a União e 70% para serem divididos entre municípios e Estados?
A minha emenda só cuida de uma coisa: a destinação daquilo que couber ao Estado. A minha emenda não gera nenhum valor novo. Ela redistribui o bolo conforme está formado. Só cuida da destinação do produto do royalty e da participação especial, por isso a emenda diz assim: “Ressalvada a parcela da União, aquilo que couber a Estados e municípios se destinará a dois fundos iguais, metade para os Estados, metade para os municípios, na distribuição interna dos dois grupos, o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM)”.
O critério da emenda teve duas matrizes. A primeira, o patrimônio é da União, só da União. No mar territorial, na bancada continental, no subsolo ou na coluna d´água toda riqueza que ali se encontrar pertence à União. O segundo, a Constituição diz que os Estados terão participação na forma da lei. Em nenhum momento ele distingue Estados litorâneos de Estados interioranos. Se o patrimônio é da União e a Constituição não distingue, por que eu vou distinguir? Por que alguém pode distinguir? Isso passou aqui no passado por desatenção, talvez, por não ter significação à época. Mas agora tem significação.
Me parece que a emenda tem fundamento constitucional, lógico e moral. A prospecção do petróleo é muito cara. O índice de êxito até localizar no campo é relativamente pequeno. Alguns falam até que é de 10 por 1. Quando fura à toa quem paga? Todos os brasileiros. Mas quando se tem sucesso se faz uma distribuição restrita? Com que fundamento? Esses fundamentos constitucionais e legais é que me levaram, e ao deputado Humberto Souto (PPS-MG), a propor um critério equânime. Ele não é igualitário. Tanto que há diferença entre os Estados. Não seria justo dar a mesma coisa a São Paulo e ao Piauí. Mas é equânime, pois usa o FPE e o FPM, que é um mecanismo compensatório. Os Estados mais atrasados no Desenvolvimento Humano têm índices e multiplicadores melhores. Então tende a diminuir a diferença que há, por exemplo, entre o Piauí e o Rio de Janeiro.
Inã Zoé — Existe a previsão de que levará cerca de 20 anos para se obter lucros reais com o pré-sal. Isso é real? Em relação aos investimentos necessários para a exploração, essa divisão não ficaria prejudicada?
A minha emenda não cogita do pré-sal, cogita de toda exploração de petróleo no mar. Ela vigora a partir do dia da publicação da lei. Redistribui os royalties atuais, só não retroage. Inclusive, por essa razão o pessoal não aposta que o pré-sal possa quintuplicar a produção nacional (de petróleo), porque pode aumentar 10%. O que estamos redistribuindo é a realidade atual e com uma projeção para o futuro. Por isso os números são apresentados em três colunas. Os atuais, o novo, que é a nossa emenda, e projeção para o futuro.
Cezar Santos — Sua emenda mexe com o interesse de todos os mais de 5,5 mil municípios brasileiros.
Tanto que os prefeitos de todo o Brasil, através da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), estarão aqui no dia 10.
“O PMDB estará dividido na eleição, embora eu não saiba em que proporção”
Cezar Santos — Seu partido deve indicar o vice da pré-candidata à Presidência pelo PT, Dilma Rousseff. Mas em São Paulo o PMDB, controlado por Orestes Quércia, está com o governador José Serra (PSDB). Qual sua posição em relação a isso?
Não é o momento de eu anunciar posição pessoal, por que para um político detentor de mandato a escolha do presidente da República não é uma questão de foro íntimo. É uma questão política que envolve a representação do partido como um todo. A eleição de sua região, seu Estado, tudo isso eu devo considerar. A convenção do PMDB provavelmente vai definir mais o tempo de TV do que a destinação dos votos, estou convencido disso. Seja qual for a definição da convenção, os votos terão mais ou menos o mesmo destino, isto é, a divisão. Não saberei em que proporção porque é cedo ainda, mas acho que o PMDB estará dividido na eleição. O que a candidatura Dilma alimenta em relação ao PMDB é muito mais o tempo de TV do que os votos. Isso se aplica também a José Serra. Ele terá votos peemedebistas independentemente da decisão da convenção. O que vai se decidir, e é importante, é o tempo de TV.
Cezar Santos — Há pouco meses o ex-ministro Mangabeira Unger fez um périplo pelo País pregando a candidatura própria do PMDB. O sr. não considera até vexatório ao maior partido do País, de maior capilaridade, há tanto tempo não ter candidato à Presidência?
Isso tem uma causa superficial e outra profunda. A superficial e verdadeira também é que o PMDB não tem um quadro político com visibilidade, história, biografia, para encher esse espaço. Tem quadros respeitáveis, mas não com repercussão. Isso é um dado da realidade, mas não é casual. O PMDB foi o fiador da redemocratização e só o foi por ser um partido nacional. E é a rigor o único nacional. Os outros são de hegemonias locais, especialmente paulistas e com presença forte em Minas Gerais. Pegue o PT com presença muito forte em São Paulo e alguns apoios menores. O PSDB em São Paulo e Minas, mas com a expressão que tem o PMDB em todo o País não há nada parecido. Para se ter uma ideia, na última eleição o voto de legenda foi, se não me engano, de 6 milhões. Esta característica de não conseguir se unificar também ocorre pelo fato de não haver uma hegemonia regional. Se o PMDB tivesse uma preponderância carioca, talvez tivesse um candidato do Rio de Janeiro com repercussão. Ou se tivesse uma preponderância mineira ou gaúcha, mas não tem. Isso decorre em parte de uma virtude também. Ele é um partido horizontal nesse sentido, ocupando todo o espaço nacional, e que tem papel crucial na preservação das instituições.
Cezar Santos — O PMDB é um partido aderente ao poder, ou seja, está com quem está no poder. Isso não é negativo?
Aquilo que é visto só pelo lado negativo, de estar com qualquer governo, também tem um aspecto que é inevitável no nosso atual modelo. Temos um sistema eleitoral baseado no voto uninominal para deputado. O partido que ganhou a eleição, o PT, seu candidato a presidente fez quase 60% dos votos, mas não fez 20% da Câmara. E como governar com um quinto da Câmara? Vamos olhar o modelo brasileiro desde que foi estabelecido. Em 1946 o Brasil reafirmou o presidencialismo que vinha desde a fundação da República, mas introduziu o voto proporcional uninominal, isto é, a lista é aberta e a pessoa vota no candidato, e isto produziu dois tipos de presidente. Os que cooptaram a maioria (legislativa) e os que foram depostos. Não há terceira hipótese. Buscando na memória histórica, [Eurico Gaspar] Dutra (1946-51) cooptou PSD e PTB e atravessou seus cinco anos. Depois veio o Getúlio [Vargas, 1930-45 e 1951-54], que tinha PSD e PTB, quando perdeu o PSD perdeu a maioria, perdeu o governo e a vida. Café Filho [1954-55] nem vale, foi uma transição. Depois veio Juscelino Kubitschek [1956-61], um craque, cooptou antes até, fez a aliança PTB-PSD e chegou aqui com maioria, sofreu turbulência, enfrentou e atravessou com aquela maioria. Jânio Quadros [janeiro-agosto de 1961] se elegeu, não cooptou e aí não durou o tempo de uma gestação, em menos de nove meses estava no chão. Jango [João Goulart] tomou posse com a maioria montada artificialmente, quando ela se esfumou perdeu o governo também. O regime militar não vale por fazer maioria artificialmente por meio da força.
Depois dos militares veio o José Sarney [1985-90], que cooptou com muita competência, chegou lá pelo voto indireto. Cooptou o PMDB com uma parte dissidente do PDS, fez uma maioria e atravessou os cinco anos. Depois veio Fernando Collor [1990-92], que perdeu a maioria e caiu. Digo, desde o impeachment, que não foram os desvios de conduta que derrubaram Collor, porque desvios como aquele houve antes e houve depois, mais ou menos graves. Collor caiu pela incapacidade política de manter seu governo. Faltou sustentação. Depois do Collor veio Itamar Franco [1992-95], e aí ocorreu um grande acordo geral. Todo mundo o carregou como em um andor. Depois veio Fernando Henrique [dois governos 1995-2002]. Na primeira eleição se elegeu com minoria, mas cooptou o PMDB depois. Atravessou seus quatro anos e no segundo período já fez a coligação antes. A coligação foi uma forma de cooptação. Depois de Fernando Henrique veio o Lula, que no primeiro governo enfrentou uma crise que quase fez seu governo ir ao chão. Ele pessoalmente vetou a coligação — e dizem que era o José Dirceu quem estava montando, mas que não aconteceu no primeiro governo.
Cezar Santos — Com o PT no poder a cooptação ganhou outro nome...
Talvez o PT achasse que poderia fazer a cooptação individual, que tem um nome: mensalão. A cooptação partidária tem outra natureza. O preço dela é a participação no governo. Isso que com frequência se analisa como negativo é da natureza da coligação. Você vai ser governo e vai ser ministro, secretário de Estado, porque se vai apoiar sem participar isso é oposição: “O que for bom para o País voto a favor”. Já o discurso de governo é: “Estou no governo, estou participando”. O rateio de cargos, que é definido como uma coisa negativa, é da natureza da atividade pública em uma democracia. Isso ocorre na Inglaterra, na França e no Brasil ocorre com maior expressão numérica pela quantidade de partidos e pelo modelo uninominal. Então tem que contentar um espectro muito mais amplo, mas não há nada de antiético e corrupto na troca de apoio pela participação, é da natureza da negociação política. Pessoalmente defendo um modelo de representação diverso que reduzisse o número de partidos.
Cezar Santos — Aí o sr. toca em reforma política. O que o sr. vê de acertos na proposta da reforma?
Infelizmente os autores da proposta frustraram-na. Quem são os autores da proposta? O governo, o PMDB e o PT. O governo mandou por meio do ministro da Justiça uma proposta de reforma política para a Casa. O PMDB me encarregou de conduzir os entendimentos, o PT apoiava minha proposta, que tratava basicamente de dois pontos: voto partidário em lista e financiamento público. Havia outras questões secundárias, mas essas duas eram cruciais. Por que isso? Porque acho que a atual Câmara, pulverizada com 20 minorias e nenhuma maioria, tem que dar um passo pelo menos. O voto partidário e o financiamento público fariam dessa outra Câmara, muito melhor. Deveria haver uma aglutinação de partidos, natural dentro do processo do voto. Se você conseguisse o voto partidário ia acabar com uma excrescência, que é a coligação de legenda, em que o eleitor vota em um comunista ferrenho, pro exemplo, e elege um direitista fanático. Se conseguisse uma forma de voto partidário, o fim das coligações de legenda e o financiamento público, a Câmara seria outra.
Hoje a atividade do parlamentar é ocupada 90%, se não for 98%, em três atividades que normalmente seriam secundárias: emendas parlamentares, nomeações políticas e fundos de campanha. Em um voto partidário, com lista e financiamento público, o deputado vai dedicar todo seu tempo a legislação, a discussão sobre o País, a viajar para conhecê-lo e para mudá-lo. As emendas parlamentares com destinação de verbas não teriam significado individual, elas seriam de bancada em função de prioridades. E não porque acho que tem que se fazer uma ponte no município e às vezes ela sai depois da verba. Às vezes se consegue a verba por ser um deputado de prestígio e vai ao prefeito e diz: “Inventa um projeto porque a verba já existe”. Isso é desperdício. A segunda atividade que mais ocupa o eleito é a nomeação política. Por que o parlamentar precisa nomear na prefeitura ou no governo do Estado? Por que cabos eleitorais, ou pessoas simpáticas, ou de representatividade, vão me trazer voto para ele eleição seguinte. Já se o candidato é do partido, os vereadores vão trabalhar para ele queiram ou não queiram, vão trabalhar pelo partido. O segundo fator então perde a importância. O terceiro, a verba de campanha, desaparece. O partido terá tantos reais por voto fixado na lei, recebe aquela verba e faz a campanha do partido. Acho que essa reforma, infelizmente, morreu. Consegui o apoio de 150 votos para aquela proposta, fora o PT e o PMDB. PSDB apoiava, o DEM, PPS, PCdoB e parte do PSB. Com o PMDB e PT já se está falando de 300 votos sobre 500. E é lei ordinária, aprova com maioria simples. Os partidos e grupos beneficiários do atual modelo chantagearam o governo: “Então o governo agora vai se apoiar nos adversários, então vamos fazer obstrução”. Isso o governo ouviu de partidos que representam os 120 deputados, mas que aprovam o governo e cobraram. O governo lavou as mãos, ao lavar as mãos negou urgência, ao negar urgência acabou a possibilidade de aprovar.
Cezar Santos — Que avaliação o sr. faz do governo Lula?
O governo Lula tem uma grande virtude. Manteve o Brasil em um caminho que tinha sido descoberto dez anos antes. O Brasil de hoje é produto, na minha avaliação, de dois fatos cruciais. A redemocratização e a estabilidade econômica. É uma herança bendita. E é uma coisa tão forte que não se pode dizer que foi obra do governo anterior. Foi obra do Brasil anterior. O Brasil nos anos de 1980, quando construiu a aliança que desembocou no governo Sarney, na anistia e na convocação da Constituinte, ele estabeleceu as condições para o Brasil se modernizar, abrir essa economia em parte, fortalecer o Estado mais democraticamente. E o Plano Real trouxe para o setor mais estrito, o da economia dirigida, a estabilidade. O governo Lula teve o grande mérito de não cumprir as promessas petistas de campanha. Aquela radicalização ficou no discurso, até hoje. Voltou agora no último congresso do PT, mas agora o Brasil sabe que é só discurso.
Cezar Santos — Por falar em radicalização, que avaliação o sr. faz do Plano Nacional de Direitos Humanos?
É sectário, estreito, ideologizado, e não é para cumprir. Essa é a parte boa. Dizer que no Brasil há monopólio das comunicações é um exagero brutal. É o mesmo que dizer que há monopólio nos minérios, no petróleo, nas fábricas de tecidos porque são grandes produtores. É uma deformação dizer isso. Assim também como questionar a anistia. A anistia foi uma construção política de preservação do País em relação aos efeitos negativos da vingança, da cobrança. Foi uma concertação. Participei dela desde o começo e sempre tive essa noção. Por menos que me agrade livrar o torturador, vou ter que engolir, é um preço que pagamos. Não temos força, nós que lutamos pela anistia, para fazer uma anistia só para as vítimas dos crimes de Estado. Ao levantar uma bandeira que não tem viabilidade, você está fortalecendo seu adversário. Isso ocorreu com a luta armada, os setores que optaram pela luta armada fortaleceram o regime militar. Era uma luta inviável e que deu ao regime o pretexto para 1968 e para muito mais. Se nós que queríamos a anistia não aceitássemos como ela foi feita provavelmente não teríamos a anistia para as vítimas, para os crimes de Estado. E essa é uma boa tradição brasileira, fizemos assim a República e a Independência. Temos um exemplo presente para nós de um Estado latino-americano rompendo com a matriz, que é o Haiti. Nosso Estado fez recebendo uma herança do Estado português. Rompemos com a colônia, mas não rompemos com a herança da civilização européia. Foi uma construção lá na independência da República. E foi uma construção em 1979 na anistia e depois em 1985 na convocação da Constituinte. Se fez um grande pacto, por isso a Constituição é enorme. Ela é grande por ser um trabalho técnico, não político. Poderíamos fazer com a metade dos artigos, mas esse é um trabalho que se encomenda para meia dúzia de juristas e sai perfeito, mas ninguém reconhece. A que fizemos é um pacto, como foi a anistia e a Constituinte.
“Quem precisa do Congresso é a sociedade civil desorganizada, não as corporações”
Cezar Santos — Há quem pregue uma readequação, uma miniconstituinte. Seria o caso?
Me oponho a uma miniconstituinte por uma razão conceitual e outra prática. A conceitual é que Constituinte é o refazimento institucional em um processo de ruptura. Isso é o que justifica política e moralmente um processo Constituinte. Se a ruptura pode ter sido um golpe de Estado, em 1989 na República ou em 1945 com Vargas ou a que tivemos agora em 1985, quando derrotamos o regime militar em seu próprio colégio eleitoral. Ali houve a ruptura. A razão prática é que não vejo a viabilidade de aprovação de uma Constituinte, ainda que limitada, porque no atual momento significaria forte risco da sedução unicameral. Há uma massa crítica muito negativa em torno do Senado Federal e acho que o Senado é indispensável no nosso modelo federativo. E a Federação é clausula pétrea. Podemos corrigir distorções na representação? Podemos, mas não as que afetem o Senado. O Senado tem consciência do perigo de uma Constituinte.
E uma terceira razão, as corporações se organizaram muito em nosso País e têm uma força muito grande. Se tivermos uma Constituinte com voto uninominal corremos sério risco de lotear o aparelho do Estado entre as corporações. Quando me dizem que devemos representar aqui a sociedade civil organizada, digo que não é o caso, porque essa não precisa. Para que, por exemplo, a OAB precisa de um deputado aqui? Para que a ABI precisa? Ou a Confederação Nacional da Indústria? Ou a Confederação Nacional da Agricultura? Eles já têm voz, voto e poder. Quem precisa são os 120 milhões de pessoas da sociedade civil desorganizada. São estes que precisam de uma casa plural, como é a Câmara dos Deputados, o Congresso Nacional. Quando acusam esta Casa dos defeitos graves que lhe atribuem comete-se uma injustiça. Não é que inventem os defeitos, é que a cobertura não é isonômica. Se fizer a mesma cobertura em qualquer setor da atividade vai encontrar o mesmo grau de desvio de conduta. Seja a Câmara dos Deputados seja um seminário. Essa cobertura injusta ocorre porque sendo uma Casa de todos, essa Casa não é de ninguém. Por isso esta Casa tem em sua vulnerabilidade a sua maior virtude. Acho graça quando acusam o Congresso de corporativo. Ele pode ser tudo, menos corporativo. Tanto que seus defeitos são conhecidos por vozes internas que os denunciam. Esta é a Casa do conflito, da heterogeneidade e só uma Casa plural é que pode ser o palco da definição do interesse nacional. Não são as casas setoriais, bem feitas, organizadas, os tribunais compostos de sábios. Toda vez que minorias fizeram leis, fizeram para minorias. Aqui se encontra uma casa vulnerável que tem sua força nessa variedade que lhe dá o único mecanismo de representação de todos.
É por isso que o Congresso Nacional tem dificuldade em algumas coisas que a percepção superficial considera importantes. Por exemplo, a celeridade. Por que a elaboração de leis tem que ser célere? Quando surge uma emergência se faz uma lei em um dia. O normal é que as leis tenham um processo de maturação e aquilo que não tem 257 votos aqui não merece ser lei. O aborto é um exemplo. Em uma sala de seis pessoas como temos aqui, duvido que se tenha uma maioria de quatro. A maioridade também. Há quem ache que deva aumentar, outros diminuir. E o menor infrator, o tratamento deve ser o mesmo que para um infrator adulto? Mais atenuado que o atual? Sabe por que não se aprova isso na Câmara? Porque não há no País uma massa crítica com clareza nesses dois pontos e não havendo é assim que tem que ficar. Agora, qualquer instituição setorial tem verdades absolutas para ela. A OAB é ótima para a OAB, embora seus compromissos públicos sejam importantes também. A sociedade civil desorganizada precisa que se fale por ela até para votar coisas antipáticas. Por exemplo, quando se aumenta um imposto isso pode ser bom só para 120 milhões de pessoas que não têm voz, que não têm nome, sindicato, jornal, que não vem a Brasília porque nem sabe onde fica Brasília.
Cezar Santos — Estourou um grande escândalo no Distrito Federal com o governador José Roberto Arruda e sua base na Câmara Distrital. É realmente necessário que Brasília tenha governador, Câmara e três senadores?
Creio que minha visão nisso aí é quase impossível praticá-la. Primeiro que o Distrito Federal poderia ser só o Plano Piloto. A Capital da República não precisa dessa quantidade de cidades-satélites que são verdadeiros municípios com 100 mil habitantes, alguns. Na melhor tradição do DF antigo ou de Washington (EUA) a Capital é administrada pela União. Acho que isso, lamentavelmente, depois que se avança para a eleição é muito difícil se pregar a extinção da eleição. Talvez Brasília pudesse ter seus deputados, o povo estar representado. Estado, senador e governador não são representantes do povo, são da unidade federada. Brasília não é uma unidade da Federação, é a capital de todos. Essa é uma opinião pessoal.
Alguns problemas de Brasília são iguais aos de outros Estados. Desvios de conduta ocorrem em todos, mas em Brasília é agravado por não ter uma tradição política. Os outros Estados disputam eleições diretas desde 1823. Indiretas por colégio e diretas até. O regente da Regência Una, Padre Feijó, na década de 1830, foi eleito por eleição direta. Isso é uma tradição que o Brasil cultivou. Quais as lideranças políticas maduras que Brasília tem que aí estão para disputar representação? São pessoas que vieram para cá para fazer a vida, no melhor sentido da expressão, aventureiros. Saudáveis aventureiros que a gente também chama de bandeirantes.
Cezar Santos — O excesso de dinheiro em Brasília também não favorece a corrupção?
Essa é outra deformação. Se essa fosse uma unidade federada tinha que viver a suas próprias custas. Aqui a União paga a magistratura, paga o MP, a Polícia Militar, a Polícia Civil, sobra dinheiro até para obras desnecessárias. Se for uma unidade federada, sustenta-se. Não é e tem que ter limitações na sua administração. A União tem que ter um peso aqui.
Edilson Pelikano/Jornal Opção
Ibsen Pinheiro fala aos jornalistas Cezar Santos e Inã Zoé, em seu gabinete na Câmara dos Deputados: “Acho graça quando acusam o Congresso de corporativo. Esta é a casa do conflito, da heterogeneidade, e só uma casa plural é que pode ser o palco da definição do interesse nacional”
“No Rio Grande nós devemos eleger o José Fogaça”
Cezar Santos — PT e PMDB são aliados no plano nacional, mas no Rio Grande do Sul esses partidos têm candidatos ao governo. Como fica essa situação?
O PMDB participa do governo Lula e uma parte substancial do partido estará com a candidata do presidente, assim como uma parte substancial, creio, estará com José Serra. No Rio Grande nosso esquema de trabalho parte de que nós devemos eleger nosso candidato, que é o prefeito José Fogaça, e subordinar a questão nacional a nossa prioridade. Invertemos a prioridade? A Presidência é mais importante? Não. Invertemos por conta de nossa realidade. Estamos unidos em torno do nosso candidato a governador e estamos divididos em torno do candidato à Presidência da República. Se temos uma unidade sobre um tema vamos exercê-la. Há quem sustente ser normal dois palanques. A candidata Dilma dispõe-se a ir a dois palanques quando a base estiver dividida, mas se isso vale do presidente para baixo, vale do governador para cima também.
Cezar Santos — Como estão as pesquisas no Rio Grande do Sul?
Fogaça e Tarso Genro (PT) mais ou menos em um empate técnico. Acho que Fogaça em crescimento e o Tarso muito próximo do limite histórico do PT, que tem o mínimo muito elevado, mas o teto relativamente baixo. O PT não baixa de um terço dos votos, mas dificilmente chega aos 40%.
Cezar Santos — E os tucanos, como estão?
Eles têm uma estrutura partidária pequena, ganharam a eleição pela boa campanha de sua candidata [Yeda Crusius] em um momento em que a polarização entre PT e PMDB abriu o caminho. Acho que na próxima eleição a governadora vai ter uma presença significativa, mas considero escassas as possibilidades de segundo turno. Vejo o segundo turno desenhado entre Fogaça e Tarso. Beto Albuquerque (xxx) é um bom candidato, mas não tem apoios que lhe deem estrutura e tempo de TV. Se o PPS, o PTB e o PP não entrarem no projeto ele não tem como decolar. Como o PT está examinando entre PMDB e Yeda, o PTB vai se definir só mais adiante, acho que a candidatura do Beto tem um potencial que talvez não se realize por falta de estrutura e tempo de TV.
Inã Zoé — O sr. defende a obrigatoriedade do diploma de jornalismo para se exercer a profissão. Qual a importância desse diploma, socialmente falando?
Primeiro defendo a parte institucional. Não cabe ao Supremo Tribunal Federal dizer se o diploma é conveniente ou não. Isso é a lei que diz. O Judiciário entendeu que esta atividade não merece ter o crivo do diploma. Isso não é atribuição do Judiciário e sim da lei. A lei que determina se motorista tem que ter curso ou não. Motorista tem que ser diplomado, forçando um pouquinho a linguagem. Enfermeiro tem que ser diplomado. Quem faz a lei são representantes dessa Casa vulnerável que representa a todos. Entendo que o Supremo decidiu em um caso peculiar, em uma ação do MP contestada pelas entidades empresariais da comunicação. Logo essa decisão só se aplica às partes. As decisões sobre inconstitucionalidade em recurso extraordinário, regra constitucional, só se aplicam às partes. Ela vale para todos só quando o Senado suspende a execução da norma. Como isso não aconteceu, ela está em vigor. Sou autor de uma questão de ordem que está encaminhada ao Senado para que ele decida sobre a suspensão da lei, mantendo-a em parte. A que o Supremo examinou tem uma clara inconstitucionalidade, não é a que exige o diploma, mas a que exige condição de brasileiro para ser jornalista. Porque o estrangeiro pode ser médico e não pode ser jornalista? É um exemplo que dou de que o Senado pode suspender este dispositivo. O outro, que exige diploma, a lei não conflita com a Constituição. A Constituição diz que é livre o exercício das profissões, respeitado os limites legais.
Inã Zoé — O sr. passou por um violento processo de acusações que o levou a abandonar a política por um tempo. E cogitou publicar um livro contando sua história. Como está este projeto?
Houve um momento que eu, atingido profundamente por algo que me marcou, muito doloroso, cogitei de dar minha versão. Acho que isso hoje é dispensável. Todo mundo já sabe o que aconteceu. Se eu escrever um livro este episódio é só um capítulo, e acho que nem vai ser o mais importante. Tinha até o título para este livro, mas que já ficou desatualizado, é menos que minha história: “Os inocentes não têm cúmplices”. Olhe os episódios das crises políticas, você vê que quem tem solidariedade imediata e automática, geralmente é sinal de cumplicidade. E os que ficam sozinhos são os inocentes sem cúmplices. Se escrever um livro vai ser sobre mim, ou as coisas que vi. Não sei se tive protagonismo tal que justifique um best-seller, mas quem sabe escrevo aos amigos, para um público pequeno. Se eu conservar a graça de uma cabeça clara até o fim quem sabe haverá a oportunidade para um depoimento. Conquistei uma coisa que não sei como se faz, logo não foi mérito. Atravessei este episódio sem conservar a mágoa. Acho que foi um processo profundo de compreensão. Logo nos primeiros dias lembro de minha mulher dizer que o que doía era a injustiça. E eu disse que essa era a parte boa, a injustiça. Se fosse justo é que seria insuportável. Isso mais a compreensão de que o ódio não faz mal ao alvo, e sim ao hospedeiro. Se fizesse mal ao alvo, o ódio era uma hipótese de trabalho. O pior julgamento é o das pessoas de bem e quando se sofre uma injustiça, se fica isolado e condenado pelas pessoas de bem agindo pelas melhores razões. Esta é a que dói. Consciência limpa é que dói; consciência suja não dói nada, eu vejo. Vejo criminosos de biografia calejadíssima cuja consciência é rosada de tão pacífica. Voltei para cá 12 anos depois de ficar fora. Levei 48 horas para me recondicionar. No dia seguinte da minha chegada já estava vendo qual era a pauta da comissão, qual era o assunto, projetos, negociações, líderes... estava como se estivesse saído na antevéspera em vez de há 12 anos. Depois que passei por isso pude concluir que o normal para mim é estar aqui. Anomalia é o tempo que fiquei fora, e o que é anômalo você rejeita. Aquele tempo em que estive afastado, que foi um exílio espiritual também, aquilo perde a significação crescentemente para mim.
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