OPÇÃO CULTURA
Nu Escuro desnudado
O ator, diretor e pesquisador Hélio Fróes fala sobre a Companhia de Teatro Nu Escuro, e sobre a dramaturgia produzida em Goiás e no Brasil
ADEMIR LUIZ - Especial para o Jornal Opção
A Cia de Teatro Nu Escuro, em quase quinze anos de atuação, assim como a Quasar, tornou-se uma instituição da cultura goiana. Com apresentações por todo o Brasil e também fora do país, a Cia possui em seu currículo espetáculos tão variados quanto “Três por Três” (1997), “Carro Caído” (2000) e “O Alienista” (2006). Estreou recentemente “Preciso Olhar”, com direção de Henrique Rodovalho.
Em 2005 a Nu Escuro, foi Destaque Cultural de Goiás, título concedido pelo Conselho Estadual de Cultura e teve seu trabalho selecionado para a Caravana Funarte e para o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, do Governo Federal. Ainda em 2005, repetindo o feito em 2006, o grupo foi agraciado com o Prêmio de Teatro do Estado de Goiás, concedido pela Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira.
O ator, diretor e pesquisador Hélio Fróes, membro fundador da Nu Escuro, é uma das mais respeitadas cabeças pensantes da atual cena teatral goiana. Estreou na direção em 2004, com o premiado espetáculo “O Cabra que Matou as Cabras”, uma livre adaptação da peça medieval francesa “A Farsa do Advogado Pathelin”, de autor desconhecido, mesclado com textos de cordéis nordestinos, esquetes de picadeiro, fábulas medievais, ditos populares e vários elementos da cultura popular brasileira. Dali em diante trabalhou em diversas peças, vídeos, projetos televisivos e de dramaturgia, com destaque para a adaptação de “O Alienista”, onde dirigiu e atuou.
Sabe-se que as raízes da Nu Escuro estão no antigo grupo de teatro Castigando Falo, formado por alunos da antiga Escola Técnica Federal de Goiás. Como se deu esse processo de transformação de um grupo amador em uma companhia profissional de teatro?
Hélio Fróes — Depois de nos formarmos na Escola Técnica, todos os integrantes se tornaram universitários da Universidade Federal de Goiás. Nesse mesmo período, o Sandro di Lima, que era nosso professor na ETFG e diretor do grupo, foi transferido para lá também. Lá reativamos o Teatro Universitário com o apoio do Carlos Fernando Magalhães, mas com a entrada da Milca Severino na reitoria da UFG esse projeto foi todo desmontado, numa completa falta de sensibilidade para as produções artísticas da Universidade. Neste momento, o pessoal do Quasar, principalmente a Vera Bicalho, nos ajudou muito a transformar a Nu Escuro numa empresa. Outra pessoa fundamental foi a Milena Jezenka, uma produtora que conseguiu organizar a parte financeira e contábil da Cia Nu Escuro. Até hoje ela nos ajuda com sua assessoria. Destaco também quando conseguimos alugar uma sede para a Cia. Lá sistematizamos melhor nosso trabalho artístico e estruturamos nosso escritório, mesmo com as despesas aumentando radicalmente e nos obrigando a gerar receita financeira muito maior.
No espetáculo “Preciso Olhar”, numa passagem confessional do texto, você, ou seu personagem, afirma que o adolescente Hélio Fróes entrou para um grupo de teatro para tentar vencer a timidez e conseguir uma namorada. Pergunto, tendo superado a timidez e conseguido a namorada, por que o jovem adulto Hélio Fróes decidiu dedicar-se profissionalmente ao teatro?
Hélio Fróes — O “Preciso Olhar” brinca muito com a metalinguagem e usa muito das histórias pessoais do elenco para construir sua narrativa. E o começo de todos da Nu Escuro foi uma coisa despretensiosa, voltada mais ao prazer adolescente do para a pretensão de fundar uma companhia de teatro. E assim foi. Ninguém seguiu a carreira planejada, todos se apaixonaram por teatro e continuaram trabalhando com ele. Hoje tentamos manter em nossas montagens esse prazer adolescente que foi o que nos motivou a trabalhar com o teatro. E a sedução do teatro é algo inesgotável, quanto mais eu estudo e trabalho, mais me apaixono por ele, pelas possibilidades de reflexão e desvelamento do homem e da vida que o teatro pode suscitar.
Você se transferiu para o Rio de Janeiro. O que motivou a mudança? Quais projetos vêm desenvolvendo na nova cidade?
Hélio Fróes — No Rio de Janeiro quero estudar. Estou com uma bolsa da Funarte de incentivo a pesquisa, depois quero fazer um mestrado. Estudo os possíveis intercâmbios entre a cena teatral e o vídeo digital. Quero montar algo com base nessas pesquisas, tanto com a Nu Escuro como em outros grupos, mas, por enquanto, só estudo mesmo. Aqui tenho o apoio afetivo e intelectual da minha esposa, Rô Cerqueira, mestranda em história da Arte na UERJ, que tem sua pesquisa voltada para vídeo-arte e o cinema de museu.
Com a distância, como ficou a administração da Cia, ensaios, montagens...?
Hélio Fróes — Continuo na Cia Nu Escuro, trabalhando na formatação de seus projetos e atuando nos espetáculos “O Alienista” e “Preciso Olhar”, que são espetáculos que pretendemos apresentar mais fora de Goiânia. Em “O Cabra que Matou as Cabras”, sou diretor, não estou no palco. Nos espetáculos “Envelopes” e “Carro Caído” fui substituído para agilizar a produção. Agora, com as facilidades dos meios digitais converso com os integrantes da Cia quase que diariamente e sempre vou para Goiânia. Fui cinco vezes nestes últimos seis meses.
Fala-se muito da geração dos anos de 1970 e 1980 do teatro goiano, encabeçada por Otavinho Arantes. Você é um nome de destaque entre os contemporâneos. É possível comparar, em termos de formação ou atuação, essas duas gerações?
Hélio Fróes — Acho que a paixão pelo teatro é a mesma e as dificuldades de hoje podem até ser menores, mas ainda estão muito presentes no cotidiano dos trabalhadores de teatro. Otavinho foi um guerreiro, um desbravador. Assim como vários dessa geração ainda são. O teatro em Goiás ainda está no começo, têm muito para crescer. Apesar de conquistas como as leis de incentivos (que tem muito a melhorar), a profissionalização dos artistas com o curso superior em Artes Cênicas pela UFG e a formação de vários festivais de teatro — Goiânia em Cena, Palhaçada, Festival do Boneco, Tenpo e os festivais da Feteg e dos grupos Ritual e Ops. Faltam políticas públicas de continuidade para consolidar uma cena teatral forte e constante em Goiás. Os grupos estão melhor estruturados e dialogando mais entre si. Eventos como a Galhofada, uma mostra de teatro de rua organizada e produzida pelos próprios grupos, ajudam a unir os trabalhadores de teatro da cidade.
Você dirigiu uma elogiada montagem de “O Alienista”, de Machado de Assis. Como foi o processo de adaptação de um clássico da literatura?
Hélio Fróes — Foi muito difícil! O Machado de Assis nos exigiu muito. E os prazos pra finalizar o projeto eram muito curtos. Foi um trabalho intenso de todo o grupo. Transpor a riqueza da narrativa do conto foi o mais difícil. Optamos por não alterar ou adaptar o texto, somente fizemos cortes no original e inserimos fragmentos do livro “Elogio da Loucura”, de Erasmos de Roterdã para dialogar com o Machado e criar contrapontos para instigar ainda mais à reflexão do espectador. A temática de “O Alienista” fala sobre loucura e repressão. Nos apoiamos nisso para criarmos as parábolas visuais do espetáculo. Vários parceiros foram fundamentais para elaborarmos “nosso universo” estético e ético do espetáculo. A Rô Cerqueira no figurino, Mara Nunes no cenário, Izabela Nascente com os bonecos, Júnior de Oliveira na iluminação, Carlos Cipriano na produção, Sergio Pato, Cristiane Perné e Marcelo Faleiro na parte musical e uma ajuda fundamental e muito generosa de Hugo Rodas na finalização do trabalho. Nessa peça, além de dirigir, também atuo ao lado de Cristiane Perné, Lázaro Tuim, Lucas Polleto e Izabela Nascente.
Você citou que estuda atualmente as relações entre o vídeo e teatro. Um de seus trabalhos de destaque foi como protagonista do curta-metragem “Nosferatu”, espécie de releitura goiana do filme clássico de Murnau. Participou também da famigerada saga trash “O Pequi”. “Envelopes” foi adaptado como curta. Um vídeo-arte abre “Preciso Olhar”. São diversos os exemplos. Enfim, como se desenha a sua relação, e a do Nu Escuro, com a produção audiovisual?
Hélio Fróes — A relação da Nu Escuro com o audiovisual é antiga, muitas pessoas da Companhia e vários parceiros trabalham nessa área. Posso citar os fotógrafos Lázaro Tuim, Milena Jezenka, Layza Vasconcelos e Rubens Cerqueira. No vídeo e cinema os Fora da Lei (Sergin, Andréia e Carlos), Pedro Plaza, Rô Cerqueira, Michel Valim, Rodrigo Horse, Adriana Brito, Henrique Rodovalho. Acredito que cada vez mais a Nu Escuro deve trabalhar com o audiovisual, devido à boa experiência com a adaptação de “Envelopes” para o curta digital “Sob a Terra Vermelha”. Hoje a Nu Escuro participa da produção de uma radionovela em 40 capítulos, “Caminhos de Pedra”, da rádio Fogaréu, e já está planejando outros trabalhos voltados para a televisão. Os estudos entre a técnica e a arte sempre me acompanharam. Desde o início, quando me formei em eletrotécnica e trabalhei como iluminador. Depois me formei em Comunicação Social com habilitação em Rádio e TV, participei de mais de 15 curtas-metragens (vídeo e cinema). E foi durante uma especialização que fiz em Filosofia da Arte que comecei a estudar mais profundamente as novas tecnologias nas artes com ênfase no teatro midiático. Nesse período, em 2008, desenvolvi um projeto patrocinado pela Funarte onde escrevi dramaturgia para teatro de rua, mesclando com a linguagem do vídeo. Chama-se “O Iconógrafo”. O texto, ainda inédito, deve ser montado pela Nu Escuro em 2011, quando o grupo completará 15 anos. Cada vez mais venho pesquisando o vídeo na cena contemporânea. Entendo o vídeo como um meio híbrido. Ele tem a capacidade de transformar e influenciar as mais variadas manifestações artísticas, como a pintura, a escultura, a arquitetura, o cinema, o computador, a televisão, a performance, o teatro, entre outras linguagens. O vídeo contamina e é contaminado por outros signos. Mas não supervalorizo o vídeo como “o salvador do teatro contemporâneo”. É mais uma ferramenta que pode auxiliar o discurso estético do espetáculo, assim como a iluminação e o som mecânico.
Algumas das propostas fundamentais da Nu Escuro é o estudo da cultura popular e a busca por alternativas ao palco italiano, se apresentando em praças, parques, ruas etc. Literalmente, vai onde o povo está. Ao mesmo tempo, noto que a Cia possui um público cativo formado, sobretudo, pela chamada classe média letrada, incluindo muitos universitários. Você percebe alguma diferença clara entre esses dois perfis de espectador?
Hélio Fróes — Percebo uma relação distinta entre o público que assiste dentro do teatro e o público da rua. Há uma formalidade no palco, as pessoas se preparam para assistir um espetáculo, pagam o ingresso e vão para um espaço preparado para facilitar a imersão do espectador na peça, nele a plateia percebe mais detalhes e nuanças dos personagens, do texto, da cena. Na rua o jogo é mais “quente”, o teatro que invade o espaço do espectador, que fica mais a vontade para jogar e interagir com o espetáculo. Grande parte de público é “flutuante”, está de passagem e se deparou com uma peça teatral e, muitas vezes, é um público “virgem” de teatro que está experiencializando essa relação teatral pela primeira vez. Isso traz uma sensibilidade diferente para o espetáculo. Percebo isso nitidamente com “O Cabra que Matou as Cabras”, que é apresentado em teatros e na rua, o espetáculo e sua relação com o espectador modifica-se significativamente, ganhando qualidades diferentes e distintas. No palco é possível perceber todo acabamento coreográfico e as matizes da encenação. Mas eu ainda prefiro o “quente” da rua com suas surpresas e respostas vivas, que deixam o espetáculo mais “aceso”! A rua exige muito do ator, quero até agradecer a dedicação desse elenco: Abilio, Adriana, Eliana, Izabela e Tuim.
O teatro extremamente físico feito pela Nu Escuro é parte de sua proposta estética, fruto de pesquisa. Mas acredito que seja uma exceção. Frequentando a cena teatral percebo que a pirotecnia gratuita tem substituído o texto. Os atores estão se transformando em atletas, sobem e descem em tecido, dão cambalhotas etc, mas falam cada vez menos em cena. É raro assistirmos espetáculos baseados no texto ou pelo menos em textos complexos. Você concorda, estamos vivendo uma crise da dramaturgia? Qual sua opinião sobre a dramaturgia produzida atualmente no Brasil?
Hélio Fróes — A escrita teatral passa por severos questionamentos, principalmente a partir dos anos 1970, quando se fortalece a valorização da autonomia da cena e a recusa do texto como eixo principal de um espetáculo, mas essas questões já eram anunciadas pelas vanguardas teatrais do começo do século XX. Hans-Thies Lehmann, no seu livro “Teatro Pós-dramático” fala que esse teatro não se baseia mais numa cosmovisão ficcional, nem no conflito psicológico de personagens identificáveis e tenta construir uma arte total, transversal, atravessada pelas artes da imagem, do cinema, das artes plásticas, do circo. Esta forma teatral não procura suscitar a adesão do espectador, mas provocar sua percepção ou emoção significativa. Penso que no Brasil existem buscas muito válidas no campo da dramaturgia e o dramaturgo assume a função de um parceiro na criação coletiva do espetáculo e dos processos colaborativos dos grupos de teatro.
Quais os grandes dramaturgos brasileiros de todos os tempos? E goianos?
Hélio Fróes — Muito difícil e perigoso elencar uma lista dos melhores de todos os tempos! Vamos dizer que gosto muito do Ariano Suassuna, Jorge Andrade, Nelson Rodrigues, Oswald de Andrade, Plínio Marcos, Alcione Araujo, Mário Borttoloto, Sergio de Carvalho. Em Goiás: Ademir Faleiros, Hugo Zorzetti, Léo Pereira, Miguel Jorge... E vários trabalhos de dramaturgias que são construídas coletivamente em Goiânia e no Brasil... Muito difícil essa resposta!
ADEMIR LUIZ é doutor em história e escritor.
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