OPÇÃO CULTURAL
Cacoetes modernos
“Com certeza” foi introduzido no Brasil pelo Programa do Faustão e daí alastrado como praga por todo território nacional. O que aconteceu com “sem dúvida” ou “certamente”? Desapareceram. Simplesmente não estão mais disponíveis no arsenal de vocabulário já tão empobrecido por telespectadores mantidos inertes e com seus cérebros derretidos pela TV
FLÁVIO PARANHOS - Especial para o Jornal Opção
Assistia “Capitu”, série da Globo dirigida por Luiz Fernando Carvalho, com o intuito de escrever a respeito em minha coluna de Filosofia & Cinema na revista “Filosofia Ciência e Vida” (Editora Escala, momento propaganda), quando aproveitaria para falar sobre a virtude da coerência, valendo-me do gancho de minha polêmica com o escritor Domingos Pellegrini, no jornal literário “Rascunho” (outro momento propaganda, estou parecendo até o filme “Amor sem Escalas”, uma propaganda atrás da outra).
(O link para o citado artigo no “Rascunho” é esse (http://bit.ly/cafrm7) mas para quem tiver preguiça de buscar e ler, resumo: Pellegrini critica “Dom Casmurro” por ter um personagem de moral duvidosa (Bentinho), desaconselhando-o para colegiais, mas, ao mesmo tempo, confessa nunca ter lido pra valer, parasitando seus colegas nos trabalhos de escola).
Enfim, assistia “Capitu” no conforto de minha casa, quando, numa das cenas inicias, ouvi Dona Glória (mãe de Bentinho) soltar um “onde” no lugar de um “quando”. Li “Dom Casmurro” sei lá quantas vezes, não me lembrava dessa derrapada de Machado. Transcrevo abaixo a versão da TV:
— Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze a semana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez anos, ONDE a família Pádua perdeu tanta coisa; daí vieram nossas relações.
Supera toda a minha capacidade de compreensão (e perdão) o porquê do roteirista ter mantido o trecho original letra por letra, trocando apenas o EM QUE (subentendo OCASIÃO em que) por ONDE. A única explicação que consigo imaginar é o nefasto cacoete linguístico que assola o país de uns tempos pra cá. ONDE passou a ser usado e abusado nas circunstâncias mais inesperadas, e, acidentalmente, até nas esperadas. Seu abuso é tanto, que passei a desconfiar quando ouço um ONDE colocado no devido lugar.
Outros dois cacoetes atuais são NO CASO e COM CERTEZA. Não é que sejam sempre usados de forma errada. É que são usados DEMAIS. NO CASO, por sinal, é absolutamente dispensável na imensa maioria das vezes em que é utilizado. Se você estiver falando com algum paulista, então, corre sério risco de ouvir um ENTÃO antes, iniciando frase e com ponto final após. Assim: “Então. No caso...”
COM CERTEZA foi introduzido no Brasil pelo Programa do Faustão (teoria minha) e daí alastrado como praga por todo território nacional. Não há uma única entrevista de um cidadão (celebridade ou não) que não tenha pelo menos um COM CERTEZA. O que aconteceu com SEM DÚVIDA ou CERTAMENTE? Desapareceram. Simplesmente não estão mais disponíveis no arsenal de vocabulário já tão empobrecido por telespectadores mantidos inertes e com seus cérebros derretidos pela TV.
(Minha caçula costuma perguntar pra minha mais velha se eu estou falando sério quando digo que a televisão derrete o cérebro das pessoas).
Há ainda outro cacoete moderno menos preocupante, mas ainda assim curioso. Não conjugamos mais os verbos no futuro do indicativo. Quer dizer, conjugamos sim, mas apenas um, o verbo “ir”. O outro permanece no infinitivo. Não dizemos mais “eu sairei”, dizemos “eu vou sair”. Nem “marcarão”, mas “vão marcar”. Ou “dormiremos”, mas “vamos dormir”. Na verdade nem vale a pena ficar citando exemplos, pois nenhum verbo escapa de ser precedido do “ir”. Nenhum. O vício é tamanho que chega a ser responsável pelo “vou ir” (Você vai duas vezes?, pergunto às minhas filhas, quando soltam uma dessas).
Na língua francesa há justificativa para a escolha por uma ou outra forma, pois existe uma diferença de significado sutil. Uma é próxima (vou partir amanhã) e outra é distante (partirei um dia). Mas em português não há diferença. Por que, então, a troca? Dizem que as mudanças na língua têm a ver com praticidade. Formas longas costumam ser invariavelmente sacrificadas por formas breves, que dão mais rapidez e fluência ao falar. Faz todo sentido. Mas o que dizer de acrescentar um verbo antes de outro? Aumenta ao invés de diminuir. “Vou dormir” = 9 letras e um espaço. “Dormirei” = 8 letras. “Vou ir” = 5 letras e um espaço. “Irei” = 4 letras. O espaço aqui é importante, numa era de contagem de caracteres do Word. É a diferença entre um artigo de 1000 caracteres ou 1500, no caso (aqui cabe!) de um editor malvado e disposto a fazer caber um texto no espaço a ele destinado. Se aumenta ao invés de diminuir, qual a utilidade desse cacoete, afinal de contas? Tenho uma teoria: diminui sim, mas não o tamanho. Diminui o esforço (outra coisa que fornece a lógica das modificações evolutivas das línguas). Precisamos saber somente a conjugação de um verbo — ir. O resto vai (aqui cabe!) no infinitivo. È a lei do menor esforço. Vingará?
FLÁVIO PARANHOS é médico e escritor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário