quinta-feira, 18 de março de 2010

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Araguaia, passado, futuro






Washington Novaes *

Contam os estudiosos da mitologia dos índios carajás que eles foram criados como peixes - aruanãs - e viviam no fundo das águas do Araguaia. Mas eram proibidos de passar por um buraco no fundo do rio. Certo dia, entretanto, um carajá desrespeitou a proibição, passou pelo buraco e saiu numa linda praia de areia branca do Araguaia. Fascinado, voltou e contou a seus irmãos. Que, juntos, foram a seu herói-transformador, Kananciué, pedir para morar na praia. Kananciué respondeu que, para isso, teriam de renunciar à imortalidade, deixar de ser peixes e transformar-se em seres humanos. Por amor ao Araguaia, eles aceitaram. O saudoso psicanalista Hélio Pellegrino dizia que esta história - já contada aqui outras vezes - era uma espécie de emblema da sabedoria humana possível: renunciar à imortalidade, aceitar a morte para começar a viver.

Pois os carajás e seus irmãos xavantes - com quem compartilham o Araguaia -, estão indignados. O Senado aprovou há poucos dias na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária projeto de decreto legislativo que autoriza obras de implantação da hidrovia do Araguaia em áreas indígenas demarcadas e homologadas. O texto ainda vai a outras comissões, mas por ele a Funai e o Ibama terão 90 dias para se manifestar; se não o fizerem, o projeto passará por decurso de prazo e permitirá a implantação da hidrovia Araguaia-Tocantins-Rio das Mortes, com início em Aruanã, assim chamada em homenagem aos primeiros moradores das margens do rio.

É estranho que o projeto tenha tido apoio da bancada ruralista, já que há poucas semanas a senadora Kátia Abreu, presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária, apresentara projeto que transforma o Araguaia no primeiro “rio parque” do país, onde seria proibido implantar um canal permanente de navegação, além de barragens, eclusas, comportas, derrocamento de pedrais e mudanças em canais que “alterem o curso natural do rio ou a calha principal”. E com essas restrições a hidrovia não terá como ser implantada, como já mostraram muitos cientistas respeitáveis.

O Laboratório de Hidrologia da Universidade Federal de Goiás, por exemplo, já demonstrou com suas medições que por Aruanã passam a cada ano cinco milhões de toneladas de sedimentos, que mudam o canal navegável e as praias de ano para ano. Por isso, implantar um canal permanente exigiria a dragagem de todo esse volume de sedimentos e areia durante séculos. Esses sedimentos são fruto de dois fenômenos: o rápido e intenso processo de erosão nas nascentes do rio (voçorocas), em consequência do desmatamento de encostas - como tem demonstrado a professora Selma Castro, também da UFG; e o processo multissecular de dejecção de areia de baixo para cima que acontece nessa região de formação mais recente, como alerta o respeitado professor Aziz Ab´Saber, da Universidade de São Paulo. E onde serão depositados os milhões de metros cúbicos dragados a cada ano? Que efeito isso terá sobre a biodiversidade animal e vegetal, como adverte o professor Tadeu Veiga, da UnB? Só uma certeza: é projeto dos sonhos de empreiteiros, que terão obras de dragagem e derrocamento de pedrais por séculos.

Além disso, é preciso lembrar o que foi mostrado desde 1987 pela Valec, quando denúncias impediram o início do projeto da Ferrovia Norte-Sul: esta teria custos de implantação e manutenção muito inferiores aos das rodovias e da hidrovia. E as obras da Norte-Sul continuam em andamento, com previsão de término para 2012. Já a hidrovia, se implantada, só iria até Xambioá (1230 quilômetros), de onde as cargas teriam de passar a caminhões para chegar a Imperatriz e embarcar na ferrovia de Carajás, para serem transportadas até o Porto de Itaqui, no Maranhão - com cinco embarques e cinco desembarques (nos locais de origem, nos portos hidroviários de origem e em Xambioá, em Imperatriz e no porto de destino). E não há alternativa, já que não existem eclusas na barragem de Tucuruí para permitir que a carga siga diretamente pelo Araguaia até o Tocantins e por este até um porto marítimo.

Qual será o custo de tudo isso ? Pode anular a grande vantagem que as cargas de grãos do Centro-Oeste terão se forem mandadas por ferrovia diretamente até um porto no Atlântico Norte, reduzindo seus fretes e ganhando competividade nas exportações para a Europa e a Ásia (estas, passando pelo Canal do Panamá). Em 1987, houve quem dissesse que a inviabilização, naquele momento, da Norte-Sul, se devera a informações vindas do exterior, para favorecer os grãos norte-americanos no mercado mundial, em detrimento da produção de grãos da área de influência do Araguaia e Tocantins, estimada em 35 milhões de toneladas até 2020 (Valor Econômico,8/3).

Exatamente por entender assim, o governo de Goiás se posicionou oficialmente em 2001 contra o projeto da hidrovia e a favor da ferrovia. É preciso agora - como já estão fazendo carajás e xavantes, dispostos a ir à Justiça -, com base nos mesmos argumentos, voltar à mobilização política e no Congresso. E com a participação dos produtores de grãos do Estado. Não podem sobrepor-se a tudo apenas os interesses de empreiteiros de obras.

Em 2001, afirmou-se que a vocação do Araguaia é especial. Exige um projeto com base no turismo ecológico e cultural - além do conhecimento e exploração racional da biodiversidade. Esse é que é o caminho do futuro.

* Washington Novaes é jornalista

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