quinta-feira, 11 de março de 2010

O Popular

Da redação






Washington Novaes *


As cidades perplexas

Já nem chegam a espantar os estranhos tipos de problema que de tempos para cá passaram a frequentar o noticiário dos jornais, além dos já clássicos – violência, trânsito, transporte coletivo etc. Um dos últimos é a revolta de moradores do Setor Aeroporto, com a projetada instalação de uma clínica de embalsamamento e reconstituição de cadáveres em uma de suas ruas (O POPULAR, 25/2, texto de Camila Blumenschein). Cemitérios já aparecem com certa frequência no noticiário, ora porque se transformam, como em São Paulo, em locais de visitação turística por pessoas em busca de silêncio e paz, ora porque túmulos se tornam alvo de ladrões. Ou então por causa de disputa entre grupos econômicos que vendem caixões e urnas funerárias em várias cidades ou comercializam espaço em cemitérios. Agora, moradores do Setor Aeroporto preocupam-se com odores, despejo de sangue na rede de esgotos, desvalorização de seus imóveis pela proximidade com mortos.

São mesmo evidências da complexidade em que se vai transformando a vida nas cidades, principalmente as maiores. Pode ser no espanto com a Prefeitura de Goiânia querendo proibir a circulação de catadores de lixo e seus carrinhos nas ruas, sob pretexto de que criam dificuldades para o trânsito e invertendo os papéis, já que o trânsito é que cria problemas para todo mundo. Pode ser em outros momentos o protesto de moradores contra o som emanado de igrejas ou casas de shows. Em outros ainda é a revolta com alagamentos e inundações. No fundo, será sempre a inconformidade com os dramas urbanos que são fruto da falta de macroplanejamento para as nossas cidades.

Sem macropolíticas como vivemos, a cidade verticaliza-se ao sabor do mercado imobiliário. Impermeabiliza-se com o asfalto por exigência do setor de transporte e dos próprios moradores. Expande-se desordenadamente, ocupa desnecessariamente novos territórios, exige novas infraestruturas, ao mesmo tempo em que mantém espantosa quantidade de imóveis desocupados em áreas já dotadas dessas estruturas. Aumenta extraordinariamente a produção de lixo (1.100 toneladas por dia em Goiânia). Transforma o Meia Ponte num dos rios mais poluídos do País. Desmata áreas rurais e obriga a migração para zonas urbanas de vetores de doenças antes confinadas. Concentra atividades e empregos – e por consequência a população (em poucas décadas, Goiás inverteu a proporção da população, que estava em 80% na zona rural). E, curiosamente, a periferia reivindica obras e serviços que a levem, mais tarde, aos dramas atuais das áreas mais antigas e “urbanizadas”.

Sem macropolíticas – tem escrito com frequência o brilhante professor José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo –, nossas cidades vivem à mercê de micropolíticas em que administradores públicos e legisladores atendem apenas, em troca de votos, a microinteresses de pequenos setores localizados da população. E deixam as cidades se expandir e se complexificar a níveis inacreditáveis. Goiânia, por exemplo, aproxima-se da relação de um veículo para cada habitante, sem sequer imaginar o que vai fazer nessa trajetória.

Para tornar tudo ainda difícil, o poder público, em todos os níveis, com o argumento de que precisa criar empregos, abre mão de impostos na “guerra fiscal” e fica sem recursos para atuar. Em Goiás, o último balanço aponta mais de R$ 80 bilhões já concedidos em incentivos fiscais (equivalentes a alguns anos da arrecadação do Estado), que teriam gerado 160 mil postos de trabalho – cada um custando, se de fato efetivado, uma renúncia fiscal de R$ 500 mil. Esse número deve ser comparado ao custo da geração de um posto de trabalho por empréstimo (não doação) concedido pelo Banco do Povo: 600 reais, ou 833 vezes menos. Só que o Banco do Povo tem dotações insignificantes – algumas dezenas de milhões de reais – comparadas com as dos incentivos. E sem falar ainda que a dívida ativa do Estado já registra mais de R$ 5 bilhões em impostos não pagos – fora os incentivos. E que a participação de Goiás no PIB nacional vem caindo nos últimos anos.

É preciso repensar tudo isso em todos os níveis – federal, Estados, municípios.

Não haverá como resolver a maior parte dos problemas mais graves sem macropolíticas adequadas. Não haverá como aplicá-las – se concebidas – sem recursos suficientes. E é preciso ter urgência. As grandes questões do nosso tempo – mudanças climáticas e consumo de recursos naturais além da capacidade de reposição do Planeta – já produzem dramas muito fortes e que tendem a ser ainda mais graves.

Há por onde caminhar. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem cidades, como Portland, que há muito tempo mantêm uma política rigorosa para evitar a expansão física do meio urbano e manter a cidade envolvida num cinturão verde. Qualquer atividade nova, para ser licenciada, submete-se a esses princípios e não é autorizada se contrariá-los.

Aqui, precisamos aliar a população com as universidades. Discutir os problemas e as políticas adequadas. Chegar, por esse caminho, a propostas viáveis. Que nos livrem da perplexidade de nos defrontarmos, a cada dia, com um novo e estranho problema.

* WASHINGTON NOVAES é jornalista

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